Por que mentir para si mesmo é fundamental para ser feliz

Por Ricardo Mioto

Eu adoro uma apresentação de Dan Gilbert, autor de “O que nos faz felizes”, em que ele cita frases de quatro pessoas para explicar qual é o segredo da felicidade:

1) “Estou muito melhor fisicamente, financeiramente, emocionalmente.”

A frase é de Jim Wright. Ele foi presidente da Câmara dos Deputados dos EUA e caiu acusado de mau uso do dinheiro público. Após isso, perdeu todo o seu dinheiro e poder.

2) “Eu não lamento por um minuto, foi uma experiência gloriosa.”

Moreese Bickham, um sujeito que ficou 37 anos preso nos EUA por um crime que não cometeu. Ele foi solto aos 78.

3) “Eu acredito que o que aconteceu foi o melhor.”

Harry Langerman, que não se tornou sócio do então quiosque McDonald’s. Ele ouviu seu irmão, que disse “você é um idiota, ninguém come hambúrguer”. Ray Kroc entrou no seu lugar e chegou a ser o homem mais rico dos EUA.

4) “Eu fui mais feliz do que teria sido com os Beatles.”

Pete Best, o baterista original dos Beatles, que foi trocado por Ringo Star antes do sucesso.

“Há algo importante a aprender com essas pessoas”, diz Gilbert. Atenção, agora você vai ler o tão esperado caminho para a felicidade:

Primeiro, ganhe poder, dinheiro e prestígio, aí perca tudo.
Segundo, fique o máximo de tempo que você puder na cadeia.
Terceiro, dê a vez para que alguém fique realmente rico no seu lugar.
E por fim, em quarto lugar, nunca entre para os Beatles.

O que Bickham está dizendo é que sempre pensamos coisas como: ah, eu nem queria aquele emprego; bom, no fundo eu nem gostava dela; dinheiro não é importante, não sou materialista, sou feliz de bicicleta.

Lembrei de tudo isso com “Autoengano”, de Eduardo Gianetti da Fonseca, que li para uma matéria que publicaremos na Folha nos próximos dias.

A tese é que nos enganamos a todo momento. Assim é a natureza humana. Seria insuportável se fosse diferente. Trata-se da “cegueira salvadora e iluminada que nos protege de pensar e de viver plenamente o peso absurdo dos nossos erros e a certeza do nosso fim”. Viva a mentira para si mesmo.

O LADO RUIM

Ok, somos mais felizes se deixamos nosso cérebro alegremente nos enganar. Então vamos fundo que o autoengano é uma delícia.

Calma.

O problema é que ele afeta nossa capacidade de raciocinar. Pense em dois manés apaixonados por seus times de futebol, partidos políticos ou visões de mundo. A sua opção a priori afeta completamente o julgamento de fatos bem concretos sobre o mundo. Foi pênalti ou não foi?

A gente pode começar a apreciar a saudável divergência futebolística desde cedo...
A gente pode começar a apreciar a saudável divergência futebolística desde cedo…

Leandro Narloch resume muito bem como isso se aplica à política:

As polêmicas urbanísticas de São Paulo são um bom exemplo de como as pessoas defendem pessoas, e não ideias.

Se fosse o Haddad a proibir os outdoors, a turma da direita diria que é comunismo, que é contra o comércio, que é tentativa de transformar São Paulo numa cidade soviética etc. Mas como foi o Kassab, que na época era ligado aos tucanos, então tudo bem.

Em Curitiba, quando o Jaime Lerner e o Rafael Greca (do PFL) inauguravam parques e ciclovias, a esquerda desmerecia, dizia que a prefeitura privilegiava os ricos enquanto as creches da periferia estavam às moscas.

Gianetti cita que Darwin estava tão preocupado com essa questão, que poderia fazê-lo se agarrar a teses preconcebidas e erradas, que criou sua “regra de ouro” metodológica: “Toda vez que se deparava com um fato empírico ou argumento contrário àquilo em que tendia a acreditar, ele não devia confiar na memória mas forçar-se a registrar prontamente e por escrito”.

Isso porque a tendência é que nós ignoremos tudo que ameace a nossa posição estabelecida e confortável. Não é algo pensado. O cérebro faz isso à nossa revelia.

Gianetti cita o jurista francês Michel de Montaigne: “Para o ateu, todos os escritos sustentam o ateísmo”. Ou, olhando a coisa de outro ângulo, diz o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein: “Você não conseguirá pensar decentemente se não quiser ferir a si próprio”.

REVOLUÇÃO…

Agora pense: qual seria o impacto político de um candidato, em pleno debate à presidência, pedir o microfone e dizer “caramba, você têm razão, talvez eu esteja mesmo pouco preparado”?

Para qualquer pessoa ambiciosa, é crucial acreditar em si mesmo, nem que seja por autoengano. A melhor maneira de convencer os outros da sua proeminência é estando você mesmo convencido disso.

Fingir não basta. O risco é muito grande. “Para o homem de ação, deixar transparecer desconfiança com relação a si mesmo equivale a broxar em público”, escreve Gianetti.

Vale para todos os lugares, da entrevista de emprego ao flerte no bar. Qual maneira de parecer confiante pode ser melhor do que de fato ter a si mesmo em alta conta?

Não surpreende que a seleção natural tenha favorecido tal estratégia, à custa da, digamos, “verdade científica”. “Na busca austera do conhecimento objetivo”, diz Gianetti, “convicções são párias”. Mas quem disse que a evolução que moldou nossos cérebros se importa muito com a busca austera do conhecimento objetivo?

Agora pense: se os líderes políticos tendem a ser aqueles que mais mentem para si próprios, afinal quase sempre são selecionados justamente entre os mais confiantes e convincentes, quão grande é a possibilidade de eles estarem errados nas suas avaliações de mundo? Mais: como isso se aplica àqueles que defendem grandes guinadas políticas?

“Paixões revolucionárias, tanto quanto o amor-paixão, têm especial vocação para autoengano”, escreve Gianetti.

“A inocência do prometer revolucionário tem a pureza comovente da fantasia libertina de uma virgem. A experiência de uma longa temporada na oposição –com frequência na clandestinidade, cárcere ou exílio– tende a suscitar vigorosas ilusões sobre as possibilidades de transformação do mundo por meio da ação política.”

Ou seja, o paraíso é prometido, mas no fim, obviamente, dá errado. Veja esta carta escrita por ninguém menos do que Engels, que nenhum de vocês pode acusar exatamente de ser um reacionário, já no fim da vida:

As pessoas que se vangloriam de terem feito uma revolução sempre acabam percebendo no dia seguinte que elas não tinham a menor ideia do que estavam fazendo, e que a revolução feita em nada se parece com aquela que eles gostariam de ter feito.

No caso soviético, argumenta Gianetti, “a revolução feita em nome da racionalidade econômica e do fim do Estado enquanto forma de dominação política redundou no seu contrário: um grotesco hospício econômico comandado por uma das mais brutais máquinas de repressão e opressão política da era moderna”.

Não estou certo de que algo muito diferente possa ser dito da Revolução Francesa. Apesar de tão idolatrada por nossos livros escolares de história, ela deu em brutalidade e ditadura, em oposição à experiência britânica, muito mais gradual.

Não se está negando, claro, que revoluções podem ter impactos (inclusive positivos) ao longo prazo. Ninguém nega que o mundo após a Revolução Francesa se tornou outro, afetando-nos com intensidade até hoje –diz a história apócrifa que, ao ser questionado por um ocidental sobre a Revolução Francesa, o líder chines Lin Biao, morto em 1971, teria dito: “Estamos observando”.

O que se está pondo é que em algum momento quase que inevitalmente a coisa sai do controle. Ou seja, você pode até saber como uma grande mudança política começa, mas é impossível prever como ela vai terminar –quase com certeza de modo bem diferente do inicialmente desejado pelas análises “autoenganadas” dos seus entusiastas.

Há, porém, uma questão etária aí.

Embora o autoengano nos acompanhe por toda a vida, aparentemente humanos desenvolvem meios de lidar aqui e ali com ele. A experiência nos torna céticos. As derrotas ligam o sinal amarelo para as convições.

Já o comportamento convicto, que por demasiado otimista nos deixa cegos ao risco, é típico da juventude. Qualquer idoso pode listar irresponsabilidades que fez quando mais novo, e as estatísticas, de acidentes de trânsito ao cometimento de crimes, estão aí para provar que jovens não são exatamente sensíveis a calcular o custo potencial de seus atos ou desejos.

Isso muitas vezes implica um apoio um tanto estridente a ideais ligados a transformar radicalmente o mundo pela ação política ou até armada, como se fosse apenas uma questão de boa vontade. Trata-se de puro autoengano em ação.

Pense em quantos revolucionários de outrora se tornaram, digamos, bem mais pragmáticos –alguns foram até pragmáticos demais e acabaram no Complexo da Papuda, na carceragem da Polícia Federal em Curitiba ou alhures…

Tá, nem tão jovens assim --e, no caso, nem tão livres para pensar de modo diferente...
Encontro da UNE com Aldo Rebelo… Certo, ilustração soviética de Stalin

Claro que nem todo jovem é revolucionário nem todo revolucionário é jovem. Mas logo se vê que é difícil encontrar gente que pulou à esquerda radical depois de velha, enquanto não é preciso muito esforço para achar pessoas que ficaram mais conservadoras com os anos…

Mas não se trata apenas de política, de qualquer forma. Prezado leitor, conheça agora o consultor de carreiras Adam Smith, especialista em autoengano nas horas vagas:

Em nenhuma fase da vida humana o desprezo pelo risco e a esperança presunçosa de sucesso encontram-se mais ativos do que naquela idade em que os jovens escolhem as profissões.

Ou seja, com tanta frequência jovens ignoram os conselhos dos pais –vai estudar medicina ou engenharia, meu filho– e resolvem que viverão de arte ou prazer, afinal dinheiro é uma futilidade.

“O custo da aposta leva consigo muitas vezes a melhor parte das esperanças e energias da juventude. As chances de sucesso, contudo, são ínfimas, e para cada premiado há uma multidão de perdedores”, escreve Gianetti.

Talvez tenha sido por isso que Bernard Shaw tenha dito sua famosa frase sobre a juventude: “Ela é uma coisa tão maravilhosa! Por que desperdiçá-la nos jovens?”


LIVROS CITADOS NESTE TEXTO

“Autoengano”, por Eduardo Gianetti (Companhia das Letras, R$ 20,90 na Livraria da Folha)
Resumo em uma frase: Pare com essa coisa de achar que é imparcial; somos completamente reféns das mentiras que contamos para nós mesmos e sofreríamos se não fosse assim.

“O que nos faz felizes”, de Dan Gilbert (Campus-Elsevier, esgotado)
Resumo em uma frase: O futuro de cada um é absolutamente imprevisível, mas a boa notícia é que seu cérebro está preparado para adequar suas expectativas de felicidade a ele.