Não venha com historinhaSem categoria – Não venha com historinha http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br Um blog sobre livros de não ficção Mon, 23 Nov 2015 10:00:33 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Por um mundo com chefes menos bonzinhos http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/11/23/chefes/ http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/11/23/chefes/#respond Mon, 23 Nov 2015 10:00:33 +0000 http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15236498.jpeg http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/?p=610 chefe

Logo que comecei a trabalhar na Folha, fui fazer uma entrevista com uma cientista. O meu chefe gostou muito, elogiou mais de uma vez.

Peguei confiança.

Uns dias depois, entreguei outro texto. Ele leu, me olhou e disse, com um tom de banalidade de quem poderia estar me pedindo para passar o grampeador: “Tá uma bosta, faz de novo”.

Fiquei ofendido. Minha vontade era falar que era então para ele imprimir, enrolar bem e… bom, e jogar no lixo, digamos. Mas pensei que talvez fosse cedo para ser demitido e tentei uma forma polida: “Então me diga por que está uma bosta”.

Para a minha surpresa, ele, então editor de Ciência, pacientemente mandou eu sentar do lado dele e explicou com clareza o que queria que eu mudasse. Fazia sentido. O pior desgraçado é o desgraçado que tem razão. Assim fica difícil –você lá procurando um pretexto para odiar a pessoa, e ela dizendo que você pode ficar à vontade para perguntar se tiver alguma dúvida…

Conto isso porque tenho muita resistência a certa tendência contemporânea ao ambiente de trabalho politicamente correto, em que as pessoas ficam excessivamente cheias de dedos umas com as outras. Talvez por isso que goste tanto de autores como o ex-presidente da GE Jack Welch e do consultor brasileiro Vicente Falconi.

Welch, que vive viajando o mundo conhecendo empresas e dando palestras, escreve que conheceu pouquíssimas empresas na vida que tinham criado uma verdadeira cultura de feedback sinceros –ainda mais nesta nossa época de ultrassensibilidades, em que marmanjo é capaz de ligar chorando para a mãe se o chefe é um pouco mais direto.

A tese de Welch é que naturalmente o trabalho de algumas pessoas estará abaixo da média, às vezes mesmo pessoas muito boas deixam a desejar em algumas tarefas, e essas coisas tem de ser apontadas claramente, mesmo que no curto prazo causem algum mal-estar.

Claro que uma cultura de transparência é muito mais fácil de implantar quando os subordinados admiram ou, vá lá, ao menos simpatizam com os planos da chefia. Quando a peonada assume uma posição defensiva, corporativista, “nós contra os poderosos” –muitas vezes por culpa da própria empresa–, fica muito difícil. Tudo vira conflito.

Mas todo mundo perde quando abrimos mão da transparência para evitar magoar as pessoas.

A pessoa que faz um trabalho apenas regular, mas não tem feedback, especialmente negativo, vai continuar na mesma rota por anos. Obviamente não verá muito progresso na sua carreira, e uma dia vai culpar a empresa, a sociedade, o machismo ou o azar pelo seu fracasso.

Recomendando tanto por Bill Gates quanto por Warren Buffett, “Winning”, de Welch, publicado no Brasil pela Campus Elsevier com o nome meio ruim de “Paixão por Vencer”, dedica amplo espaço à falta de franqueza nas empresas.

“As empresas vencem quando elas sabem fazer uma diferenciação clara entre quem tem melhor performance e quem não tem, quando elas cultivam os bons e abatem os ruins. Companhias não devem tratar a todos igualmente. Em geral, você nem precisa demitir os menos adequados. Eles percebem e vão embora antes. Ninguém quer ficar em uma organização onde não é desejado”, escreve Welch.

Isso não é cruel com quem se dá mal? O americano defende que não.

“Eu fico louco com as críticas contra a diferenciação, porque ela é melhor e mais justa para todo mundo. É melhor quando você recebe informações honestas o suficiente para saber se está perto de uma promoção ou se deveria estar procurando outra coisa. O feedback muitas vezes dói, eu sei, mas ele é libertador, porque mostra onde você está e quais expectativas deve ter.”

As críticas, óbvio, tem de seguir uma lógica e uma métrica coerentes ao longo do tempo –se cada dia é uma coisa diferente que importa, a mensagem que se passa é de que no fundo nada importa e o avaliador está escolhendo algo aleatório para implicar.

O autor americano critica também a vitimização de alguns funcionários. “Ver você mesmo como uma vítima é autodestrutivo. Isso pode ser o começo de uma espiral que vai levar ao fim da sua carreira. Você não ganha nada com isso. Nós vivemos em uma cultura em que os pais processam redes de fast-food porque as suas crianças estão gordas. Por favor!”

Eu sempre penso nos melhores técnicos de esportes –o Bernardinho, digamos.

Imagine se, em um jogo decisivo, o jogador de vôlei se confunde na hora de sacar e dá com a bola na rede. Nenhum técnico à beira da quadra reagiria dizendo diplomaticamente “tudo bem, eu sei que você está fazendo o seu melhor, e não acho que seu saque tenha sido ruim, continue se esforçando”. Por que as pessoas no ambiente corporativo deveriam fazê-lo?

Não se trata de defender a agressividade, longe disso, mas sim que um honesto “foi horrível, vê se agora faz direito” é fundamental para a formação de equipes que buscam bons resultados e para a própria carreira dos seus membros.


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Por que conservadores devem se preocupar com o aquecimento global http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/11/18/por-que-conservadores-devem-se-preocupar-com-o-aquecimento-global/ http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/11/18/por-que-conservadores-devem-se-preocupar-com-o-aquecimento-global/#respond Wed, 18 Nov 2015 19:00:44 +0000 http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15236498.jpeg http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/?p=594 O conservadorismo é uma filosofia da cautela. O revolucionário é o sujeito que acha que, com boas ideias e boa vontade, pode transformar o mundo. O conservador é o cético que responde que isso vai dar obviamente errado, que vai sair do controle, que o poder vai corromper, que vai morrer gente, que vamos com calma para não destruir o que já temos.

Destruir o que já temos.

Para o revolucionário, o que já temos não vale muita coisa. A civilização ocidental é desprezível, opressora –o progressista é aquele que vê “cultura do estupro” entre nós, mas olha para comunidades islâmicas e enxerga apenas multiculturalismo.

O conservador acha que temos muito a perder. Que a barbárie, a arbitrariedade e a lei do mais forte são o padrão na história da humanidade, e que devemos a todo custo preservar as instituições (como a propriedade, a lei, nossa cultura) que fazem com que tenhamos alguma segurança nestes nossos tempos, como discute muito bem Thomas Sowell em “Conflito de Visões” (É Realizações).

É por isso coisas que os conservadores deveriam se importar com o aquecimento global.

Mudar o clima global e “ver no que vai dar” não é uma postura de cautela, não é uma decisão preocupada com a manutenção do que já temos. Pelo contrário, é uma atitude “porra louca”, “pau na máquina”, irresponsável, típica do outro lado do espectro político.

A ciência do aquecimento global é muito simples –um ótimo texto sobre o assunto é o do sempre interessante Reinaldo José Lopes. Não precisa ser Einstein para entender o efeito estufa, e o sujeito tem de ser muito pirado para questionar o fato de que estamos muito rapidamente aumentando a concentração de CO2 na atmosfera.

Para piorar, o clima é o que os pesquisadores chamam de sistema complexo. Isso significa que ele se mantém em um equilíbrio de forças muito sutil, muito delicado, e deliberadamente mexer nesse negócio pode levar a efeitos cujas consequências são imprevisíveis e potencialmente catastróficas –como uma revolução política.

Uma voz conservadora seria aquela dizendo: “Se acharmos que podemos mexer impunemente em algo que até agora funcionou tão bem, vamos acabar estragando”.

Seria, mas não é. O físico americano Carl Sagan criticou isso já há muitos anos em “Bilhões e Bilhões”, perguntando: “Afinal, o que os conservadores estão conservando?”.

A questão, a meu ver, é que o aquecimento global tem, especialmente nos Estados Unidos, um problema de relações públicas com os eleitores, um pouco na linha apontada pela historiadora da ciência de Harvard Naomi Oreskes no livro e no documentário “Merchants of Doubt” –ainda que ela pareça muito mais preocupada em atacar o lobby alheio do que em fazer autocrítica.

A mudança climática acabou tendo sua imagem associada à esquerda –muitos dos envolvidos com o assunto são os chamados “melancia”, verdinhos por fora e vermelhos por dentro. Aliás, as questões ambientais tendem a atrair ativistas, e poucas coisas irritam mais um conservador do que um ativista. O ativista grita, quer sua bandeira implementada a qualquer custo, se amarra na árvore.

Os ambientalistas, contaminados por suas ideologias políticas, acabaram fazendo com que uma questão que deveria ser majoritariamente sobre substituição de tecnologia (carvão por vento, petróleo por biocombustíveis, carros mais eficientes) virasse um debate sobre estilo de vida. Consumir é feio, olha aqui a ciência provando que o o capitalismo e sua profusão de produtos são moralmente errados, a gente sempre avisou.

Por que os céticos do aquecimento global estão ganhando a batalha nos Estados Unidos? Porque, no campo oposto, os ativistas fizeram todo o possível para ganhar a antipatia do eleitor não esquerdista. Mais impostos. Menos carrões confortáveis em garagens de casas no subúrbio. Mais bicicletinha. Era óbvio que ia dar errado. O fato de as discussões internacionais sobre o aquecimento global passarem por tediosas e inúteis conferências do clima lideradas pela ONU, organização tão impregnada de progressismo, também não ajuda. Nunca se trata, também, da bomba populacional que são muitos países em desenvolvimento, que devem ter um forte aumento das suas emissões nas próximas décadas.

Uma boa ideia seria criar tributos sobre o carbono apenas na medida em que cortássemos impostos sobre a renda. O Estado fica do mesmo tamanho, para alívio de quem tem suspeitas contra o seu poder. Boas políticas tributárias são aquelas que incidem sobre aquilo que não queremos –aquecimento global– e aliviam o que queremos –renda. Mas é claro que Al Gore, o pessoal do Greenpeace ou todo o lobby verde na imprensa jamais sugeririam uma coisa dessas. Sua bandeira está, afinal, longe de ser meramente ambiental.

Deu no que deu.


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Conheça o menor teste de inteligência do mundo http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/11/13/conheca-o-menor-teste-de-inteligencia-do-mundo/ http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/11/13/conheca-o-menor-teste-de-inteligencia-do-mundo/#respond Fri, 13 Nov 2015 10:00:34 +0000 http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15236498.jpeg http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/?p=576 einstein-magda

No seu livro “Davi e Golias” (Sextante), Malcolm Gladwell cita o Teste de Reflexão Cognitiva, que chama de “o teste de inteligência mais curto do mundo” –são apenas três perguntas.

O TRC, criado pelo professor da Universidade Yale Shane Frederick, “mede a capacidade de entender quando algo é mais complexo do que parece”, nas palavras de Gladwell.

Na quarta-feira, a Folha publicou uma entrevista que fiz com ele em que ele defendia que não há mérito algum em ter nascido mais inteligente: “Quanta justiça há em ter nascido mais esperto?”

A nota no TRC é tão boa para prever em que universidade a pessoa vai estudar que poderia substituir o vestibular: os alunos do MIT, o Massachusetts Institute of Technology, umas das escolas mais prestigiadas do mundo, acertam em média 2,18 questões. Os alunos da menos gloriosa Michigan State University acertam 0,57 questões.

Mas não é só isso. Até os hábitos de leitura das pessoas com notas boas e ruins são diferentes. Enquanto 67% das pessoas com TRC baixo preferem a revista “People” (algo como a nossa “Caras”), 64% daqueles que têm TRC alto preferem a “New Yorker” (no Brasil, pense na revista “Piauí”). Não é de se estranhar, o TRC também tem correlação com a renda.

Vamos, então, ao teste. Tente não responder impulsivamente.

1 – Uma caneta e um bloco de papel custam juntos R$ 1,10. A caneta é um real mais cara do que o bloco. Quanto custam a caneta e o bloco?

2 – Cinco máquinas demoram cinco minutos para produzir cinco peças. Quanto tempo cem máquinas iguais a essa levariam para fazer cem peças?

3 – Em um lago, há um conjunto de flores aquáticas que dobra de tamanho a cada dia. São necessários 48 dias para que esse conjunto cubra toda o lago com flores. Quantos dias são necessários para que ele cubra apenas metade do lago?

As respostas vão abaixo.

Cuidado para não ver sem querer.

Mais cuidado para não ver sem querer.

Bom, lá vai:

1 – A caneta custa R$ 1,05. O bloco custa R$ 0,05.

2 – Cinco minutos (o tempo é o mesmo, uma vez que o número de máquinas aumentou proporcionalmente ao de peças).

3 – 47 dias (afinal, ele dobra todos os dias).

O divertido é que as respostas não são intuitivas. Um raciocínio menos sofisticado (e errado) sugeriria que a caneta custa R$ 1, que as máquinas levam cem minutos ou que são necessários 24 dias para o conjunto atingir metade do lago.

Embora a maior parte das pessoas que eu conheço se saiam bem (e certamente poucas delas acompanham a “Caras”…), a média americana é apenas 1,43 pontos entre os homens e 1,03 entre as mulheres.

*

Outra maneira curiosa de avaliar o raciocínio alheio é por meio de um problema de Fermi.

Pouco tempo atrás, um jornalista bastante inteligente com quem conversei falou algo interessante: “O que me irrita não é o sujeito errar um número, mas errar a ordem de grandeza. É escrever, sem nem se tocar de que há algo estranho, que uma empresa está construindo uma sede de R$ 100 bilhões –isso é mais do que o valor de mercado de quase todas as companhias brasileiras!”

Um problema de Fermi testa justamente isso –em outras palavras, ele pega o sujeito “sem noção”. Consiste nisto: você deve estimar, na proposta do físico italiano Enrico Fermi, um dos mais importantes do século 20, quantas viagens de elevador são feitas por dia em Nova York, digamos.

“Não faço ideia”, dirá o leitor mais apressado. Ao que Fermi responderia: pegue um pedaço de papel, uma caneta, e faça um esboço, ué. Alguém minimamente razoável tem uma ideia de quantas pessoas moram na cidade, pode estimar quantas vivem ou trabalham em prédio (a maioria?), quantas viagens uma pessoa faz em média por dia, qual o ocupação média de um elevador…

O importante, óbvio, não é cravar o número preciso, mas saber se a resposta se dá na casa das centenas, dos milhares, dos milhões, dos bilhões. Ou seja, saber se você tem noção de proporção ou se está completamente perdido neste mundão velho –como muitos jornalistas por aí, infelizmente…

Eu e o repórter Gabriel Alves brincamos um pouco aqui com três estimativas que inventamos:

– O número de janelas na cidade de São Paulo.
– O número de cadeiras de dentista no Brasil.
– Quantas pessoas vão ao cinema por fim de semana em São Paulo.

Fizemos as contas de modo independente, e os resultados foram inacreditavelmente parecidos. (A maravilha de ser editor é que você pode falar para o sujeito parar tudo que está fazendo para perder tempo com essas coisas só porque você quer escrever um post para o seu blog, mas juro que ele gostou.) Veja só:

Janelas: 16 milhões (Mioto) e 24 milhões (Gabriel)
Cadeiras de dentista: 100 mil (Mioto) e 90 mil (Gabriel)
Ingressos de cinema: 150 mil (Mioto) e 150 mil (Gabriel)

Não existe uma conta oficial para o número de janelas ou de cadeiras de dentista, infelizmente, mas existem dados sobre os ingressos de cinema –o valor real, descobrimos depois, não fica muito longe de 200 mil ou 250 mil por fim de semana, o que significa que não só acertamos a ordem de grandeza como chegamos bastante perto.

Os problemas de Fermi mostram um pouco “o poder e a beleza da quantificação” que Carl Sagan citava em “Bilhões e Bilhões” (Companhia das Letras): “Conhecer algo apenas qualitativamente é conhecer de maneira vaga”.


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A dura vida do filhinho de papai http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/11/10/a-dura-vida-do-filhinho-de-papai/ http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/11/10/a-dura-vida-do-filhinho-de-papai/#respond Tue, 10 Nov 2015 16:34:56 +0000 http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15236498.jpeg http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/?p=565 Eu sou que nem o Sebastião Salgado. Gosto de pobre.

Bom, ok, na verdade eu gosto mesmo é da classe média baixa. Aquelas famílias sofridinhas, carro velho que sempre dá problema, pai e mãe que provavelmente não foram à universidade nem viajaram para fora do país, mas que formam um núcleo familiar estruturado o suficiente para criar os filhos –pai presente, ninguém passa fome, todo mundo toma banho, ninguém tem parente na cadeia etc.

Se você é um filho da classe média baixa e não for um idiota –muitos são–, o mundo é um campo aberto. Vá à universidade e você terá mais instrução do que qualquer um na sua casa. O passo seguinte, trabalhar, significará uma incremento inacreditável de renda.

Você verá que dinheiro é bom e não vai querer parar. O primeiro carro, a primeira viagem à Europa, o primeiro jantar em lugar mais caro, o primeiro apartamentinho. Somos movidos a esforço e recompensa –eis a definição de felicidade. A maravilha é que, para quem veio de baixo, as recompensas soam altíssimas para qualquer esforcinho feito. Para quem não tinha nada, afinal…

É impressionante a quantidade de gente proeminente nas suas carreiras que veio da classe média baixa. Olhe ao redor. (Para quem é realmente pobre é muito mais difícil, porque a falta de estrutura familiar e a necessidade de lutar pelo almoço do dia seguinte desde muito cedo torna escapar do ciclo vicioso da miséria financeira/intelectual um ato heróico.)

Mas e os filhos dos ricos? As recompensas não parecerão exatamente novas… Você já tinha tudo aquilo. Seu pai já lhe deu o carro. Você cansou de ir à Europa. Óbvio que vocês nunca jantaram no Habib’s, este hors concours da classe média baixa –lado a lado com a C&A, claro. Você irá à universidade e não vai se sentir mais esperto do que ninguém na sua casa.

Quando começar a trabalhar, perceberá que terá de se esforçar um monte para conseguir um ganho de bem-estar… nulo! Aliás, provavelmente o seu salário inicial será até incapaz de patrocinar o mesmo estilo de vida que você tinha sob a proteção de papai. Você vai se dedicar e a sua recompensa será… tchan, negativa!

Não é à toa que é tão difícil criar os filhos quando se é rico, afirma Malcolm Gladwell em “Davi e Golias” (Sextante). Ele conta a história de um poderoso executivo de Hollywood que veio da classe média baixa –vestia roupas baratas e levava bronca do pai quando deixava a luz acesa.

“Eu queria ter mais liberdade, queria almejar coisas diferentes. O dinheiro era uma ferramenta para isso. Gostei daquilo. Ganhei mais autoestima. Senti mais controle sobre a minha vida”, disse.

Mas agora, morando em uma mansão, ele não sabia como dar aos filhos a mesma lição.

Escreve Gladwell:

Ele sabia que tivera sucesso porque aprendera, de forma longa e difícil, o valor do trabalho e a alegria e a realização que advêm de abrir o próprio caminho no mundo. Mas, por causa do seu sucesso, seria difícil seus filhos aprenderem as mesmas lições. Os filhos dos multimilionários em Beverly Hills não catam folhas do seus vizinhos. Seus pais não mostram, irritados, a conta de luz quando a lâmpada fica acesa. Não se sentam num estádio de basquete atrás de uma coluna e imaginam como seria ficar perto da quadra. Eles têm lugar cativo perto da quadra.

O executivo argumenta na mesma linha: “Educar crianças em um ambiente abastado é bem mais difícil do que se pensa. As pessoas são arruinadas pelas dificuldades financeiras, mas também pela riqueza, porque perdem a ambição, o orgulho e seu senso de valor próprio. As coisas são difíceis nos dois extremos do espectro. A coisa funciona melhor quando se está em algum lugar intermediário.”

O problema da criação é especialmente difícil para pais que foram pobres na sua juventude.

Ninguém sente saudade de ser pobre e muitas vezes não atribuímos nosso estado atual da riqueza à pobreza anterior –pelo contrário, o pensamento intuitivo é que, se tivéssemos nascido já ricos, seríamos ainda mais abastados, mas isso desconsidera o fator motivação. Isso faz faz com que, ao ter seus filhos, tais pais pensem “não vai faltar nada, vou dar a eles a infância que eu não pude ter”. Como diziam os Mamonas Assassinas, “você não sabe como parte um coração ver seu filhinho chorando querendo ter um avião, você não sabe como é frustrante ver sua filhinha chorando por um colar de diamantes”.

O problema é que ter sido pobre é uma das melhores coisas que pode acontecer com alguém para botar as coisas em perspectiva.

*

Fiz uma entrevista com o Malcolm Gladwell que publicaremos nos próximos dias na Folha. Fico de colocar o link aqui no blog.


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Biologia, Simone de Beauvoir e assédio http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/10/26/biologia-simone-de-beauvoir-e-assedio-2/ http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/10/26/biologia-simone-de-beauvoir-e-assedio-2/#respond Mon, 26 Oct 2015 12:46:05 +0000 http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15236498.jpeg http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/?p=545 Marcha das vadias (Flickr/Upslon)
Marcha das vadias (Flickr/Upslon)

O mundo das ideias é como um pêndulo. Vai de extremo em extremo.

Pense na aplicação da biologia ao comportamento humano. Ela propiciou um monte de barbaridades.

Uma delas foi o darwinismo social, ou seja, a ideia de que os pobres são menos aptos e que seu desaparecimento agiliza o aprimoramento genético da nossa espécie. O racismo, o eurocentrismo e o sexismo são seus primos próximos –embora, claro, no último caso ninguém defendesse o desaparecimento das mulheres, mas “apenas” que se limitassem a seu papel secundário de quem passa a vida sendo mandada primeiro pelo pai, depois pelo marido e por fim pelo filho homem.

Isso felizmente causou uma reação. Então o “espírito do tempo” se radicaliza para o outro lado. No caso do sexismo e do texto de Simone de Beauvoir citado na última edição do Enem, “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Ou seja, surge a ideia de que tudo é socialmente construído e que não há diferença biológica nenhuma entre homens e mulheres, como ela defende em “O Segundo Sexo”.

O problema é que ela escreveu isso em 1949, antes da existência dos conhecimentos atuais sobre neurociência ou hormônios.

Há três ótimos livros contemporâneos que tratam da questão: “Tábula Rasa” e “Como a Mente Funciona”, do psicológo e professor de Harvard Steven Pinker, ambos no Brasil pela Companhia das Letras, e “O Paradoxo Sexual“, da sua irmã Susan Pinker, ex-professora da Universidade McGill, no Canadá, publicado pela Best Seller.

Steven Pinker trata de um estudo com 25 meninos (com os cromossomos XY) que nasceram, por um defeito congênito sem relação com os hormônios, sem pênis e foram criados como meninas. “Todos apresentaram padrões masculinos de brincadeiras turbulentas e padrões de comportamento de homens”, escreve.

Em um caso famoso, um garoto sem pênis foi criado como uma menina sem ser informado disso. Mesmo com o “New York Times” tendo escrito nos anos 1970 que ele tinha atravessado “uma infância satisfeita como menina”, nos anos 1990 veio à tona que ele tinha se rebelado na adolescência, rasgando seus vestidos e dizendo que queria ser homem –só então seus pais contaram a ele a verdade, e hoje Bruce (ex-Brenda) está casado com uma mulher.

Mas, se existem diferenças biológicas de gênero em função de diferentes “softwares” pré-instalados rodando nas mentes de homens e mulheres, quais seriam elas? Algumas são bastante favoráveis às mulheres.

A noção de que mulheres são menos dadas à irresponsabilidade é um exemplo –em outras palavras, a testosterona leva o apetite por risco às alturas e emburrece.

Isso explica por que as mulheres batem o carro com menos frequência, como mostram as companhias de seguro. Quem tira racha, se acha o bonzão do volante, quer correr e dar cavalo de pau é, quase que invariavelmente, homem. Não é sem motivo que homem morre antes.

A diferença tem uma implicação importante no mundo profissional: a presença de mais mulheres nos conselhos de administração, diretorias e fundos de investimentos faz com que se diminua a chance de os machões jogarem a empresa no buraco ao fazê-la assumir mais risco do que deveria. Pense nos centenários bancos quebrados na crise de 2008 e nos seus gestores homens.

INTERESSES

Outras potenciais diferenças entre homens e mulheres são mais problemáticas.

A mais difícil talvez se relacione com os interesses por diferentes áreas do conhecimento. Não vou falar muito disso aqui, mas mesmo bebês primatas machos se mostram mais empolgados em brincar com coisas que se mexem –coisas parecidas com “carrinhos”– do que as pequenas fêmeas.

Entre os biólogos, há uma tendência a acreditar que não há “construção social” ou estímulo dos pais que explique o fato de desde tão cedo os meninos se interessarem mais por “coisas”, enquanto as meninas dedicam mais sua atenção a “pessoas”. Tais diferenças são percebidas ainda na maternidade –meninas recém-nascidas fixam mais o olhar nos rostos alheios do que os meninos.

A explicação evolutiva, afirmam os irmãos Pinker, seria esta: nas tribos pré-históricas em que nossos comportamentos evoluíram, ao longo de muitos milhares de anos, as mulheres passavam o dia juntas, cuidando das crianças e coletando frutas nos arredores, enquanto os homens saiam para caçar, uma atividade, claro, bem menos amorosa e mais silenciosa, porque caso contrário o bicho foge… A evolução teria selecionado tais aptidões em cada gênero.

Isso ajudaria a explicar por que há tanto homem na matemática e tanta mulher no psicologia, mas trata-se de um ponto altamente polêmico. Até porque daí a alguém concluir apressada e erroneamente que mulheres não prestam para a engenharia nem homens para a pedagogia não precisa de muito… Como diria a própria Beauvoir, “biologia não é destino” –está aqui um homem jornalista, e não programador de computadores, falando. Umas das pessoas mais espertas que já conheci na vida é uma exemplar engenheira da P&G. Nós não somos a média. Nós somos pessoas individuais. Do ponto de vista do indivíduo, a média é uma estupidez.

Em termos de inteligência, nenhum estudo ou teste apontou diferenças na média entre homens e mulheres, embora existam mais homens nos extremos –ou seja, que vão muito mal ou muito bem em provas padronizadas. Como já percebeu qualquer professor de escola, quando um homem dá para ser burro, ninguém o segura…

ASSÉDIO

As diferenças biológicas se refletem intensamente em outro ponto: o assédio sexual.

Eis algo para se refletir: quantos de nós homens ficaríamos verdadeiramente incomodados se, digamos, uma colega de pós-graduação tivesse o hábito de falar conosco repousando a mão sobre a nossa coxa? Quão agredidos nos sentiríamos sendo revistados por uma policial mulher? Se recebessemos um email sexualmente indecoso de uma ex-colega de trabalho, ainda que indesejável, sentiríamos nosso espaço sendo invadido?

O feminismo tende a apontar que o idiota que chama uma desconhecida de “gostosa” na rua está fazendo isso para reforçar uma relação de poder. Não sei se o sujeito na obra está muito preocupado com as estruturas de dominância social… Me parece que, no fundo, o cara é capaz de achar que está fazendo um agrado –e que se a vítima não gostar, ela é “mal agradecida”, “mal educada”, “mal humorada”, “mal comida”.

O ponto é que, para explicar para um abestalhado homem que ele não deve fazer essas coisas com uma mulher, não basta o ditado “não faça para os outros o que você não quer que façam com você”. É preciso convencê-lo de que a percepção de espaço pessoal das mulheres é diferente –mas, bom, isso implica assumir que as mulheres são, de algum modo, diferentes.

Como fazer isso sem acabar passando a mensagem simplista e absolutamente errada de que mulheres são seres assexuados? Corremos o risco de retroagir ao século 19 ao propagar a noção de que mulheres têm uma sexualidade mais complexa e menos vulgar do que os homens? Como explicar que mulheres podem sem problemas curtir sexo casual, mas que a sua excitação não se desperta da mesma maneira tosca e meramente visual que a dos homens? Em resumo, como defender diferenças sem que isso signifique legitimar o sexismo generalizado anterior? Eu não sei.

Mas ignorar esse problema não me parece a melhor forma de lidar com o assédio sexual.

“Parte da mente sexual masculina é a capacidade de excitar-se com a mais débil insinuação de uma possível parceira sexual”, escreve Steven Pinker. “Os zoólogos descobriam que os machos de muitas espécies estão dispostos a cortejar uma variedade enorme de objetos que têm uma vaga semelhança com a fêmea: outros machos, fêmeas da espécie errada, fêmeas empalhadas. O macho da espécie humana excita-se com a visão de uma mulher nua em filmes, fotografias, desenhos.”

“O equivalente mais próximo da pornografia no mercado de massa para as mulheres são os romances eróticos, nos quais o sexo é descrito no contexto de emoções e relacionamentos em vez de ser uma sucessão de corpos aos solavancos.”

De um ponto de vista evolutivo, mulheres e homens têm diferentes incentivos para fazer sexo. O “custo” da promiscuidade para um homem pré-histórico não era muito grande: bom, ele poderia engravidar um monte de gente por aí, o que do ponto de vista da perpetuação dos seus genes “tarados” na verdade é muito bom. Para uma mulher, vale a pena não exagerar: uma gravidez é um investimento alto, nove meses que resultam em um bebê absolutamente dependente. Biologicamente, vale a pena que o instinto sexual feminino –e, não tenha dúvida, desejo não é algo voluntário– faça com que ela escolha minimamente com quem se transa.

Isso faria, em tese, com que homens fosse menos (ou nada) criteriosos, defendem os autores. Na cabeça de um homem, por esse raciocínio, o sexo poderia facilmente ser uma coisa um tanto impessoal. Mulheres, na média, tenderiam a dar um valor um pouco maior à intimidade. Na média, óbvio, não significa todas nem sempre.

Isso fica nítido, aponta Pinker, analisando o comportamento dos gays e das lésbicas –onde se pode ver o comportamento “puro” de homens e mulheres, já que relacionamentos heterossexuais misturam as duas coisas. Na San Francisco pré-Aids, 28% dos homens gays relataram mais de mil parceiros sexuais na vida; 75% relataram mais de cem. Nenhuma lésbica relatou mais de mil parceiras e só 2% disseram ter feito sexo com mais de cem.

“Estou sugerindo que os homens heterossexuais teriam a mesma propensão que os homens homossexuais a fazer sexo mais frequentemente com estranhos, a participar de orgias anônimas em saunas e a parar em banheiros públicos para cinco minutos de felação na volta para casa se as mulheres estivessem interessadas nessas atividades. Mas elas não estão”, escreve o autor do estudo original, citado por Pinker.

Por fim, a noção de que os homens são vítimas da educação que tiveram, da maneira como foram “socialmente construídos”, também me parece generosa demais com os eles –nesse ponto, me aproximo daquelas feministas radicais que não enxergam muita esperança para o sexo masculino. Atribuir a violência masculina à sociedade que lhe disse que empurrar o amiguinho era legal, dizer que o cara trai a mulher porque “foi educado para acreditar” que não havia problema… Nossa, que dó dos homens!

Aliás, quanto à agressividade, homens são mais violentos e mais propensos a cometer crimes em todas as culturas. “Variações no nível de testosterona entre diferentes homens se correlacionam com a libido, a autoconfiança e o impulso por dominância”, escreve Steven Pinker. “Criminosos violentos têm níveis mais elevados de testosterona que os não violentos.”

É preciso dizer ainda que há duas Simones de Beauvoir. Há a que teoriza sobre a origem das diferenças entre os sexos e há que defende maior protagonismo das mulheres na vida pública. Questionar a primeira metade, obviamente, não significa rejeitar a segunda. No Fla-Flu que é a internet, não precisa nada para alguém ser acusado de estar defendendo o retrocesso nas conquistas que as mulheres conseguiram no último século.

NOTA 1

Vi muita gente criticando e celebrando a presença do texto de Beauvoir no Enem. Do ponto de vista da doutrinação, me parece óbvio que há outras coisas disparadamente mais problemáticas na prova, como a afirmação de que a globalização e a automação levam ao desemprego ou as várias críticas ao mercado. Quanto à redação, um tanto incompreensível alguém ser contra discutir violência contra a mulher.

Já o ponto de vista da esquerda, que ficou encantada com a questão, mostra que há uma transição nesse grupo: a centralidade anterior das classes sociais dá lugar à defesa de minorias, como as mulheres, os negros, os gays, os transexuais. A gente começa a ouvir moça de universidade pública que mora em mansão do papai no Morumbi dizer que o coitado do homem que veio de família sem capital, absolutamente “proletário”, é perante ela um “opressor”, porque afinal ser mulher rica é muito pior do que ser homem pobre… Quem diria que sentiríamos saudade da luta de classes!

NOTA 2

Alguns dos primeiros a espernearem quanto à “questão feminista” no Enem foram Marco Feliciano e Jair Bolsonaro. Com uma companhia dessas, fica difícil fazer qualquer crítica ao MEC –e só no Brasil que gente supostamente liberal elege militar defensor de ditadura e de censura como ídolo da causa.


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A alta cultura segundo Jorge e Mateus –uma crítica ao conservadorismo http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/10/21/conservadorismo/ http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/10/21/conservadorismo/#respond Wed, 21 Oct 2015 10:30:41 +0000 http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15236498.jpeg http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/?p=501 E agora algo completamente diferente: certa vez, horrorizei os colegas da editoria de Mercado da Folha ao comentar que, bom, gostava de música sertaneja.

É constrangedor, eu sei. Mas não sou o único. É até comum: gente jovem, solteira, que gosta de festas e, meio sem querer, acaba criando certa simpatia pela trilha sonora “ruim” de vários desses lugares. Você está lá, tem cerveja, gente para conhecer, está contente, acaba recebendo a música com boa vontade.

Passei muitos momentos realmente felizes em churrascos ou em festas no interior. Gosto muito de Ribeirão Preto ou de São Carlos. (Até porque em bar que toca Iron Maiden só tem homem –embora alguns cuidem tão bem da cabeleira quanto as moças da Vila Olímpia…)

Pensei nisso ao ler “A Vida na Sarjeta” (É Realizações), que comentei aqui anteontem. De maneira geral simpatizei com o livro, mas há algo que me incomoda nele.

SOFISTICADO QUEM?

No livro, o psiquiatra britânico Theodore Dalrymple defende que a sociedade ocidental perde muito ao abandonar a ideia de que existe uma cultura ou um estilo de vida superior –ou seja, naufragamos na noção de que todas as culturas ou obras culturais são apenas diferentes, mas não melhores ou piores.

Para ele, é terrível que a sociedade passe a aderir à cultura da “subclasse”, dos pobres, que seria inferior. O fim do conceito de alta cultura é o começo da decadência da nossa sociedade.

Eu também sou contrário ao relativismo cultural. Mas é tão terrível que eu conheça a letra quando começa a tocar “Chora, me liga” no rádio? Como se define a alta cultura?

Coisas hoje absolutamente incorporadas ao repertório musical da elite, “de bom gosto”, de Beatles a João Gilberto, já foram consideradas lixo ou ao menos enfrentaram muita resistência do mainstream –no caso da bossa-nova, Ruy Castro conta a história em “Chega de Saudade” (Companhia das Letras).

Um argumento é que Beethoven é muito mais sofisticado que Banda Eva, mais difícil, é por isso melhor.

Mas não me entra na cabeça que ser menos penetrável signifique ser superior –no caso da literatura, aliás, vários de nós valorizamos autores pela simplicidade e clareza da linguagem. Caso contrário, George Orwell é uma porcaria. Você pode argumentar que se trata de sofisticação de enredo, mas até aí a trama de Harry Potter também não é trivial.

Outro argumento é o da permanência. Hits populares seriam fast food que ninguém vai lembrar em 20 ou 30 anos. Grandes músicas ou livros demoram a cair no esquecimento.

Pode ser, mas há muito sertanejo que sobrevive –“Evidências”, que quase todo mundo conhece, é um exemplo. Toda uma geração ainda lembra do É o Tchan. Você pode dizer que isso é coisa dos anos 1990, ainda muito recente portanto, mas o que dizer de “Mamãe eu Quero”, de 1937, obra de tão elevado mérito poético e melódico?

Enquanto isso, muitas músicas que consideraríamos boas não permanecem. Outro dia descobri, por exemplo, uma musiquinha dos anos 1950 de Billy Blanco chamada “Tereza da Praia” (aqui, com Tom Jobim e Dick Farney) que é uma graça, mas que, tirando o próprio Ruy Castro, hoje ninguém conhece. Para cada Cartola ou Wilson Simonal salvos do ostracismo, em vida ou depois dela, para quantas pessoas talentosas não resta nada além do esquecimento?

No caso dos livros, ninguém nega que Dostoievski ou Machado de Assis têm permanência, mas o que dizer do ainda best-seller de auto-ajuda “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas”, de 1936?

Alguns até podem defender que não se trata de um livro de todo ruim, mas vamos colocá-lo, digamos, no cânone ocidental? Quanto tempo falta para ele chegar lá?

TATUAGENS E MANOS

Tudo isso não é defender que não existam coisas melhores ou piores. Claro que algo faz Dostoiévski ser melhor que “50 Tons de Cinza”. Ella Fitzgerald melhor que o Tchan. Claro que originalidade é melhor do que clichê, embora sempre se corra o risco de cair na invencionice.

Meu ponto é que é difícil definir. Que existe uma carga de subjetividade inevitável. Que não é algo matemático. Que a aleatoriedade tem um papel no sucesso e no reconhecimento. Que é complicado.

Desse ponto de vista, me incomoda a busca de Dalrymple por desqualificar qualquer coisa que não esteja ao seu gosto como inferior. É quando o conservadorismo esbarra na liberdade. Lembra um pouco a definição de H. L. Mencken para puritanismo: “O medo constante de que alguém, em algum lugar, possa estar se divertindo”.

Ele cita as tatuagens, por exemplo.

Não duvido, como ele diz, que de início elas estivessem relacionadas com a criminalidade –ele, que trabalhou muitos anos em cadeias, diz que a melhor maneira de prever se alguém vai ser preso poderia se dar pelo número de tatuagens. Mas daí a achar que o fato de gente das classes média e alta se tatuarem signifique o fim da civilização ocidental, que estaria se curvando à “subclasse”, vai muita água por baixo da ponte. O jazz também surgiu com gente pobre. Há tatuagens simpáticas e bastante delicadas, especialmente femininas, que em nada lembram a vida na penitenciária.

Outro ponto é com relação à linguagem.

Ele se incomoda com a perda do inglês clássico, aristocrático. Escreve: “Onde outrora o aspirante devia imitar a dicção dos que eram os seus superiores sociais, as classes altas agora imitam a dicção dos inferiores. Pais que enviam os filhos para escolas particulares caras, por exemplo, hoje relatam, com regularidade, que os filhos saem com dicção e vocabulário que pouco difere da gíria da escola estadual local”.

Por um lado, até concordo que há gente rica se esforçando, por algum motivo misterioso, para falar como os pobres. Acho bem estranho que até alguns jornalistas jovens, quase todos de famílias no mínimo de classe média, chamem os outros de “mano” ou “véio”, para o desespero dos editores mais veteranos. Mas esperar que a língua seja engessada é uma bobagem –não é porque adotamos o “você” em vez do “vossa mercê” que o mundo acabou.

O mundo não acabou. Nem vai acabar se as pessoas escutarem funk no Carnaval. Não me parece que agir como polícia dos costumes –não seja gay, não transe com desconhecidos, não beba, não se vista de tal jeito, vá à igreja– seja o melhor caminho para o pensamento que se propõe como contraponto à esquerda. Calma lá.

Fica liberado, portanto, ouvir Jorge e Mateus.


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Os pobres têm responsabilidade por sua condição, defende autor britânico http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/10/19/pobres/ http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/10/19/pobres/#respond Mon, 19 Oct 2015 10:30:58 +0000 http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15236498.jpeg http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/?p=482 Eis uma tese polêmica: em boa medida, os pobres merecem sua condição.

Ela está no livro “A Vida na Sarjeta”, de Theodore Dalrymple, lançado no Brasil pela É Realizações. O prefácio é do professor de Stanford Thomas Sowell.

O autor é um psiquiatra britânico que atendeu por vários anos pacientes de bairros pobres e penitenciárias na Inglaterra.

Segundo ele, impera entre eles a vitimização.

“Quando um desses homens me diz, para explicar o seu comportamento [com drogas ou no crime], que se deixa levar facilmente, pergunto-lhe se alguma vez se deixou levar pelo estudo da matemática ou do subjuntivo dos verbos franceses.”

Nas escolas desses locais, os poucos alunos que se dedicam são vítimas de perseguições e agressões físicas. Há constrangimento geral para que todos “optem pelo fracasso”, inclusive pela adoção de vestuário e linguagem característicos do que Dalrymple chama de “subclasse”, que detonam qualquer potencial empregabilidade.

Em outros termos, vocês não se ajudam, está dizendo o britânico.

“Uma das terríveis fatalidades que podem recair sobre um ser humano é nascer inteligente e com sensibilidade em um bairro pobre inglês”, escreve Dalrymple. “Será longa a tortura.”

Sowell, que é americano, lembra que, no seu país, algo parecido acontece nos guetos negros –os poucos jovens dedicados aos estudos, que almejam ascender à elite, são espancados por estarem “agindo como brancos”.

Por lá, os intelectuais interpretam isso como uma reação ao racismo da sociedade. Mas como justificar então que a mesma coisa aconteça na Inglaterra, onde a maior parte dos pobres é branca?

Tal desprezo ao estudo e ao trabalho seria recente, posterior ao Estado de bem-estar social, e causada pelo comodismo, escreve o britânico: “Afinal, sempre haverá comida suficiente, um teto sobre a cabeça e uma televisão para assistir, graças às subvenções do Estado.”

Com o passar dos anos, sem nenhum conhecimento de ciência, arte ou literatura, só restará o tédio, a falta de sentido.

“Na ausência de interesses ou carreira, logo a maternidade parece uma boa escolha; só depois fica claro o quanto é aprisionante, especialmente quando o pai –de modo previsível– desaparece.”

Suas casas são imundas e descuidadas, defende Dalrymple, até porque são dadas sem nenhum encargo pelo Estado.

Como o governo parte do princípio de que o miserável nunca tem responsabilidade por sua miséria, as moradias seriam distribuídas justamente aos mais vagabundos –quem, a duras penas, se dedica a conseguir um emprego e tem sucesso na empreitada perde prioridade com os assistentes sociais, o que só reforça o incentivo à passividade.

EDUCAÇÃO

Uma crítica importante que se pode fazer à tese de Dalrymple é que ele próprio admite que a miséria da educação pública tem um papel grande na vida que os pobres acabam levando.

“Meu pai nasceu em um bairro pobre nos anos que antecederam a Primeira Guerra onde uma a cada oito crianças morria no primeiro ano de vida. Naqueles tempos, entretanto, quando algumas crianças londrinas iam à escola descalças, o círculo vicioso da pobreza ainda não havia sido descoberto”, escreve.

“Dessa maneira, meu pai recebeu lições de latim, francês, alemão, matemática, ciências, literatura e história, como se fosse plenamente capaz de ingressar na corrente da civilização superior.”

Dalrymple afirma que isso acabou, por ação da ideologia dos intelectuais, que passaram a defender que educar os jovens pobres para que ingressem na elite, cobrando empenho, seria uma forma de oprimi-los, não de salvá-los. Deveríamos simplesmente aceitar a cultura da “subclasse”, tão válida quando qualquer outra.

“Encorajar as crianças a fugir da herança de infinitas novelas e música pop, pobreza, imundice e violência doméstica é, aos olhos de muitos professores, encorajar a traição à classe social. É algo conveniente, porque absolve o professor da responsabilidade tediosa de ensinar.”

Dalrymple defende que aprender doí. Em outras palavras, ninguém gosta muito –quanto mais uma criança– de ter de se esforçar para entender elementos da gramática ou da aritmética. Mas será impossível sair da pobreza sem essas coisas…

A partir dos anos 1960, surgiu na Inglaterra a noção de que a educação deveria “fazer sentido” no contexto social da criança e ser prazerosa a ela.

Como o contexto social das crianças pobres é o analfabetismo funcional, elas acabaram confinadas à própria condição –“um fato óbvio para quem leu as tentativas lamentáveis de as pessoas da subclasse se comunicarem por escrito”.

VIOLÊNCIA

Por fim, chama a atenção como Dalrymple pinta um retrato de violência nas periferias. Os mesmos homens cujas dores crônicas nas costas lhes impedem, para sempre, de arranjar um emprego, recebendo aposentadorias por invalidez, não perdem uma briga de bar.

Como no Brasil, alguns poucos moradores se refugiam nas igrejas –os “crentes”, tolerados pelos traficantes e bandidos de toda cepa, desde que fiquem na sua.

“Marx estava certo ao dizer que a religião é o suspiro do oprimido, o ópio do povo. É claro, errou a identidade do opressor: na Inglaterra de hoje, não é o plutocrata envaidecido, é o vizinho traficante que ouve música nas alturas e bate com bastão de baisebol nos outros.”

Mas o pior é a violência doméstica, onipresente. A maior parte das crianças não tem pai; os padastros se substituem com rapidez e normalmente batem nas mães.

Muitas das pacientes de Dalrymple são vítimas seriais de agressão doméstica. Ele diz que são raríssimos os casos em que não era evidente que o sujeito era violento antes mesmo do relacionamento.

Mesmo assim, tal comportamento é tolerado por elas, que repetidamente pedem para que ele não faça nenhum tipo de denúncia, porque afinal o agressor agora vai mudar…

“A verdade é que a maioria (embora nem todas) das mulheres espancadas contribuíram para essa situação infeliz pela maneira como resolveram viver.”


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O liberalismo e uma defesa de ‘Que horas ela volta?’ http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/10/08/o-liberalismo-e-uma-defesa-de-que-horas-ela-volta/ http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/10/08/o-liberalismo-e-uma-defesa-de-que-horas-ela-volta/#respond Thu, 08 Oct 2015 15:47:23 +0000 http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15236498.jpeg http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/?p=445 A empregada Val (Regina Casé) e sua filha Jéssica (Camila Márdila)
A empregada Val (Regina Casé) e sua filha Jéssica (Camila Márdila)

Hoje eu queria relacionar o filme “Que horas ela volta?” e o livro “Um Capitalismo para o Povo” (Bei), do economista liberal Luigi Zingales, que já citei mais de uma vez aqui.

Surpreendentemente, muita gente na imprensa não gostou do filme brasileiro. A obra sobre as relações entre uma empregada doméstica e seus patrões não seria “de luta” o suficiente.

Houve quem escrevesse que o filme, apesar das “boas intenções”, era “conservador”. Houve quem implicasse com o fato de ele ter sido produzido pela Globo Filmes. Mas a crítica que melhor resume o sentimento dos insatisfeitos é a de Eduardo Escorel, na “Piauí”, para quem as transgressões de Val, a empregada, são “pueris”, pois “não ofendem ninguém”.

A solução encontrada pela personagem e sua filha –que não vou contar para não estragar o filme– parece não ser agressiva o suficiente. O que queriam os críticos? Que tacassem fogo na casa dos patrões? Matassem todo mundo? Entrassem para o PSTU?

O incômodo de quem esperava mais luta de classes e menos humor no filme se relaciona com a maneira como se enxerga a ascensão social. As posições das pessoas na sociedade são fixas ou mais ou menos fluidas?

Se são sólidas, impenetráveis, então precisamos de uma arte que mostre que o sistema inevitavelmente oprime e tem de ser jogado fora. Se as posições são maleáveis, então a arte pode explorar sem culpa a comicidade do jogo das mudanças de casta, das adaptações difíceis dos indivíduos, fazer graça do ex-pobre que não sabe se portar como rico ou do ex-rico que não sabe ser pobre.

Italiano radicado nos EUA, Zingales defende que o modelo tradicional americano é o de posições sociais maleáveis, de possibilidade de ascensão social, e que o europeu tende a ser mais aristocrático, menos aberto.

“Na Europa, as pessoas que enriquecem são frequentemente descritas como parvenus (novos-ricos). Trata-se de uma expressão pejorativa que sugere que tais pessoas não têm a mesma ‘classe’ daquelas que herdaram dinheiro e não tiveram de trabalhar duro para ganhá-lo. Em outras palavras, a riqueza tende a ser vista como privilégio”, escreve ele. “Nos EUA, quem enriquece é chamado de self-made man” –ou seja, um louvável homem que “fez a si mesmo”.

MOBILIDADE SOCIAL NO BRASIL

É difícil dizer se somos um país de self-made men ou de novos-ricos. Há muito das duas coisas.

Somos, de fato, um país do privilégio, de uma elite que usa e sempre usou o Estado para manter sua posição às custas do resto da sociedade.

Mas também somos um país de imigrantes que souberam, ao longo das gerações, deixar a pobreza para trás.

Nossa visão política é sempre muito influenciada por nossa experiência pessoal. Nesse sentido, minha família é uma das tantas que participaram do êxodo rural brasileiro. Sou a primeira geração que foi à universidade. Como tantas garotas da sua geração, minha mãe saiu do interior do Rio Grande do Sul para fazer serviços domésticos. Volte ao começo do século passado e encontre ancestrais analfabetos e sem terra.

Muitos dos nossos melhores médicos, juristas ou empresários têm uma história de mães e pais sofridos –a “geração sacrifício”, que primeiro teve de sair da pobreza para depois dar condições de estudo aos filhos. No fundo, somos todos Jéssica, a filha da empregada doméstica que, no filme, tira uma nota bastante alta no vestibular da USP.

Transição de classe social é algo que, com muita frequência, se faz em duas gerações: a primeira arruma a casa, a segunda avança para a alta qualificação.

Além disso, não somos um país de sobrenomes, embora isso varie conforme a região. Ao menos em São Paulo, mas talvez nem tanto no Nordeste, se você é rico pouco importa quem é seu pai.

Mesmo em “Que horas ela volta?”, perceba que em nenhum momento o sobrenome dos patrões é citado –algo impensável se fosse um filme estrangeiro. Na verdade, é comum, tanto no Brasil quanto nos EUA, que a elite crie narrativas heroicas sobre a história da sua família, na linha “você não sabe de onde a gente veio”, o que denota que o que dá glamour é ter “vencido na vida”, em vez de pertencer a uma longa árvore genealógica aristocrática.

Dois colegas que voltaram recentemente da Europa, de Portugal e da Inglaterra, tinham o mesmo ressentimento. Primeiro, se impressionaram com o desapego dos europeus a sinais exteriores de status tão comuns nos EUA e no Brasil –carrão, roupas caras, ostentação. Depois perceberam que isso não significa que não exista status –ele apenas se dá de outras formas, por sobrenomes compostos, parentes influentes ou brasões pomposos.

PROBLEMAS

Claro que o processo brasileiro é imperfeito.

Alguns “novos-ricos” do Sul tendem a achar que sua história prova que há certa justiça social, mas sempre foi muito mais fácil para as famílias de colonos gaúchos ou catarinenses: o mero fato de normalmente sermos (bem) brancos, em um país com tantos problemas raciais, já é suficiente nos poupar de muitos constrangimentos crueis.

Ainda me impressiona como certa xenofobia paulistana é totalmente aplacada quando o forasteiro é do Sul, como quem diz “vocês tudo bem, vocês são uma pobreza loira de sotaque bonito”.

Muito mais grave do que isso, a péssima educação básica pública brasileira –um pouco menos pior no Sul– condena muitos jovens pobres brasileiros a começarem a corrida muito atrás daqueles que vão às escolas particulares.

Por fim, os pobres em busca de ascensão são sempre reféns da situação econômica ao longo da sua juventude. O próprio filme de Anna Muylaert parece um pouco fora de timing nesse sentido: conta a história de uma “nova classe C” que, em 2015, já está voltando à pobreza.

Todas essas imperfeições dos nossos mecanismos de mobilidade social servem de combustível para argumentos contra o livre mercado, o capitalismo, os “neoliberais”. Vá a uma universidade da “elite progressista” e veja como há gente de esquerda ou crítica à noção de meritocracia.

“Vários experimentos com voluntários mostram que participantes que recebem dinheiro após um esforço árduo se mostram bem menos dispostos a dividi-lo. Isso ajuda a explicar as preferências redistributivas da chamada esquerda-caviar: jovens herdeiros que nunca se sustentaram e defendem o socialismo para atenuar sua sensação de culpa por terem uma vida privilegiada”, escreve Zingales.


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Crianças de dois anos: coisas encantadoras ou pequenos demônios? http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/10/07/criancas-de-dois-anos-coisas-encantadoras-ou-pequenos-demonios/ http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/10/07/criancas-de-dois-anos-coisas-encantadoras-ou-pequenos-demonios/#respond Wed, 07 Oct 2015 19:28:50 +0000 http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15236498.jpeg http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/?p=420 Crédito: Ian Munroe/Flickr/CC BY 2.0
Crédito: Ian Munroe/Flickr/CC BY 2.0

Quando eu tinha uns dois ou três anos, contam meus pais, eu não deixava eles irem trabalhar sem antes dar uma volta de carro comigo no quarteirão –e tinha de ser no banco da frente, algo mais socialmente aceito na época.

Devia ser um porre. De novo o moleque chorando e fazendo você chegar atrasado porque quer andar de carro… Mas e o lado sentimental? “Mãae, não quero que você vá, deixa eu pelo menos ir um pouquinho com você” –e lá está um coração materno partido que não vai conseguir recusar.

É típico de crianças de dois anos: uma constante tensão entre ser essa coisa-amável-carinhosa-que-fala-engraçado-e-segue-os-pais-para-todos-os-lados e esse ser-incontrolável-escandaloso-que-não-fica-um-minuto-sem-nos-causar-constrangimento.

O livro “O Papai é Pop”, de Marcos Piangers, que já citei aqui, é repleto de exemplos dessa situação. O autor catarinense é pai de uma menina de dois anos (e também de uma de oito) e escreve sobre sua relação com elas.

Eu peguei um resfriado violento e quem me traz xarope é a pequena, com um cuidado emocionante, olhando concentradamente para o copinho que pinga no chão a cada passinho. É uma evolução. Na primeira vez em que recebeu essa missão, Aurora tomou todo o xarope.

Ela também penteia o meu cabelo. Antes de cada escovada, lambe a mão e passa na minha cabeça, porque é como as professores penteiam o cabelo das crianças na escolinha. Tenta escovar os meus dentes, pedindo para que eu abra a boca, e depois diz ‘cupe!’, que é para me avisar que está na hora de cuspir.

É também por essa fase dos “terrible two” que a criança começa a questionar as coisas, a apreciar a sonoridade sofisticada de bater uma panela na outra e a riscar todas as paredes. Muitos pais, cansados e impotentes, acabam adotando uma política de “redução de danos”: filho, por favor, então fica essa parede só para você riscar, ok? E se der para bater as panelas só durante a tarde…

Quando não temos filhos, escreve o autor, vemos tudo isso e achamos os outros pais relapsos ou incompetentes. Aquela criança gritando e se jogando no chão no supermercado? A mãe que não deu limites…

“Quando você chega na casa dos amigos e vê pasta de dente espalhada pelo chão, não é culpa deles. A culpa é da criatura mais fofa do recinto. Se você considera que aquele pai que colocou a Galinha Pintadinha no iPad para o filho assistir no restaurante um ser humano desprezível, se você é do tipo que ingenuamente acredita que com diálogo e carinho as crianças crescerão sem birra e sem ranho, você está errado.”

A Galinha Pintadinha, aliás. O livro defende que ela é a melhor amiga dos pais. A última esperança de sossego. “Para Aurora, todos os animais de quatro patas são auau e todas as crianças são nenê, mesmo que maiores do que ela. As únicas pessoa que têm a honra de ter uma palavra exclusiva são papai, mamãe e a Galinha Pintadinha, que é popó.”

Embora o pequeno livro do colunista do jornal gaúcho “Zero Hora” não tenha uma grande linha mestra –é um pouco picotado demais, com vários textinhos–, é uma obra divertida de ler.

O autor é um paizão encantado com suas meninas: “Cansei de levar a minha filha na escola, vê-la chorando e trazê-la de volta para que minha mulher faça o trabalho. Os insensíveis dizem que isso é birra de criança, que ela está querendo me manipular. Então parabéns, está tendo sucesso”. Até por isso, chama a atenção que ele não tenha conhecido o pai –ele conta que sua mãe, desesperada com a gravidez, pretendia abortá-lo. “Mas a barriga foi crescendo, ela foi dando um jeito, e eu nasci. E minha mãe foi meu pai. E tenho certeza que não foi fácil para ela, mas eu estou aqui.”


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Por incrível que pareça, uns poucos jornalistas nunca ganharam tão bem http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/10/01/por-incrivel-que-pareca-uns-poucos-jornalistas-nunca-ganharam-tao-bem/ http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/2015/10/01/por-incrivel-que-pareca-uns-poucos-jornalistas-nunca-ganharam-tao-bem/#respond Thu, 01 Oct 2015 17:39:32 +0000 http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15236498.jpeg http://naovenhacomhistorinha.blogfolha.uol.com.br/?p=324 Ser jornalista é ruim e está piorando. Mas, para uma pequena elite, as coisas estão na verdade melhorando.

É o que diz o novo livro do economista da Universidade de Chicago Luigi Zingales, “Um Capitalismo Para o Povo”, que já citei aqui.

Ele crê que, em função das novas tecnologias, está surgindo uma “sociedade do vencedor-leva-tudo” –sim, the winner takes it all, como na música do Abba, leitor fã da Alpha FM.

“É verdade que para os repórteres de pequenos jornais locais que perderam o emprego não serve de consolo saber que os colunistas mais famosos do New York Times agora são lidos em dúzias de países, tornando-se astros mundiais”, escreve ele. Mas é assim que é.

A tendência foi percebida há alguns anos pela revista “The Economist”:

Estes são anos difíceis para os jornalistas. Os jornais demitem. Os sobreviventes têm de trabalhar cada vez mais. Nas Redações, o que mais se ouve é gente dizendo que deveria ter estudado direito. 

Mas alguns estão se dando melhor do que nunca. São os passageiros de primeira-classe do mundo do jornalismo. Viraram “jorno-gurus”.

A revista cita Thomas Friedman (entre outros, “O Mundo é Plano”, Companhia das Letras), Malcolm Gladwell (“O Ponto da Virada”, Sextante) e Chris Anderson (“A Cauda Longa”, Campus Elsevier). Eu citaria ainda Nate Silver e o falecido David Carr, escrevendo sobre coisas tão diferentes quanto esportes e mídia.

A revista contava que esses caras chegavam a cobrar US$ 50 mil por uma única palestra –R$ 200 mil.

“Eles se tornaram mestres na arte do marketing global”, dizia a reportagem, que contava que Friedman mora em casa que parece um palácio e que Gladwell negociou R$ 4 milhões só de adiantamentos por um livro. “Nada mal para uma profissão em declínio terminal.”

Embora sejamos uma sociedade ainda muito mais pobre e analógica, nada indica que o fenômeno não vá acontecer no Brasil também.

Ainda que em outra proporção, alguns de nós estão de fato virando grifes nas suas áreas –a meu ver, é o caso do amigo e vizinho de blog Salvador Nogueira, o Mensageiro Sideral, que, dizem, mora melhor que o Thomas Friedman.

O jornalista de ciência Salvador Nogueira, entre um post e outro no blog
O jornalista Salvador Nogueira em evento com entusiastas da astronomia, entre um post e outro. (Ok, mentira.)

COMO ISSO ACONTECE?

A geografia costumava ser um fator de reserva de mercado, escreve Zingales.

Mas um fazendeiro do Mato Grosso hoje pode perfeitamente ser atendido por advogados de um grande escritório de São Paulo, com livre remessa de documentos digitalizados e teleconferências –pior para o advogado local. O mesmo vale para aulas online.

A Folha já publicou várias matérias sobre medicina à distância. Uma contava que médicos paulistas tinham zerado, daqui, a fila de três anos de oftalmologia de uma cidade de Rondônia.

Isso aumenta o mercado potencial dos melhores, que então podem cobrar mais caro, mas quem está fora da elite sai perdendo. Tem um efeito problemático na concentração de renda –mas essa é outra questão.

Para um jornalista, o efeito é que você pode ser lido por muito mais gente do que, digamos, em 1987, por causa das limitações de distribuição de conteúdo da época.

De São Paulo, você pode agora ser seguido de perto por um promotor no Tocantins, um empresário em Manaus ou por um professor universitário de Pelotas –como o tempo dos leitores sempre é limitado, alguém vai sair perdendo.

(Isso afeta também as empresas; assinaturas digitais, ao acabarem com a dificuldade logística, permitem que leitores distantes e interessados em política nacional ou economia tenham um inédito acesso fácil e barato a grandes jornais do centro do país.)

Ok, tio Mioto, gostei disso aí, quero virar um superastro do jornalismo, o que eu faço?

Bom, eu gostaria muito de ter uma resposta perfeita, mas ninguém tem. O que eu e alguns autores temos são alguns palpites, que compartilho:

1) Você é um distribuidor de conteúdo.

É algo que demorei a perceber.

Eu tinha um Facebook bem fechadinho, com posts só para amigos. Se você é jornalista, isso é um erro. Você precisa se aceitar como uma pessoa pública –aliás, pode me adicionar lá.

Isso porque a grande oportunidade dos nossos tempos é cativar um público leitor seu, com quem você tem uma inédita interação absolutamente não mediada. Isso se torna um ativo –você carrega essas pessoas com você.

Fomos “criados” em uma cultura em que a atividade do jornalista acabava na hora em que ele entregava o texto. Todo o resto –imprimir, distribuir, criar uma marca– era um problema da empresa. Isso mudou. Você vai precisar gastar algumas horas promovendo o seu conteúdo e aprendendo o que funciona e o que não funciona. O que me leva ao polêmico segundo ponto.

2) Trabalhe nas horas vagas.

É, pega mal falar isso, eu sei –ainda mais sabendo que a maior parte dos jornalistas acredita em “mais valia” e encara o trabalho como uma jornada diária de inevitável exploração pelo patronato, em vez de uma chance de aprender e aparecer para o mundo.

A minha colega e professora Ana Estela de Sousa Pinto (autora do ótimo “Jornalismo Diário”, pela Publifolha) muitos anos atrás causou certa polêmica ao escrever que, quando você gosta do que faz, não há trabalho excessivo:

A realidade é que não há escapatória: pra fazer um trabalho bom, que sobressaia, é preciso se dedicar de verdade. Não só em jornalismo. Em qualquer profissão. Pense em alguém que você admira e veja se ele não está envolvido com o que faz até os dentes. A opção, viável, até comum, é não trabalhar muito nem demais. Trabalhar só o normal. Mas, a não ser que você seja um gênio (e a maioria de nós não somos), seu resultado será medíocre. É isso que a gente quer?

Claro que a profissão têm muitas facetas e eu mesmo já estive em cargos em que, sinceramente, contava os minutos para os dias (e a vida?) acabarem.

Também sou contra a noção de que jornalismo é sacerdócio –a minha parte eu quero em dinheiro, obrigado–, mas me parece claro que, se você não gosta (muito) de jornalismo, ou de algum tipo de jornalismo, não deveria ser jornalista.

É uma profissão meio cruel. Um médico mais ou menos, sem brilho, ainda terá uma salário bastante razoável. Talvez tenha de viver fazendo plantões aqui e ali, mas vai ter um carro bom, uma boa casa, vai viajar bastante.

Ser um jornalista mediano, que faz só seu trabalhinho oito horas por dia, que não surpreende ninguém, é estar condenado a uma vida um tanto sofrida, mal paga, submissa, deprimente –ainda mais com o rumo que as coisas estão tomando; the winner takes it all, não se esqueça.

3) Crie projetos pessoais.

Certo, vou usar minhas horas vagas. Mas para que?

Dedique-se a coisas que sejam estimulantes para você e que, de algum modo, promovam o seu nome. Proponha um blog. Escreva um livro. Filme um documentário. Tire fotos. Escreva. Crie um podcast. Faça algum projeto. Sei lá.

Escreva, nem que para isso tenha de trabalhar mais. Especialmente no começo da carreira, não fique escondido na “cozinha” de um veículo de comunicação qualquer. Por mais que sua função seja importante, quase ninguém enxergará você.

A internet nos dá uma liberdade incrível de executar ideias. Você não precisa convencer ninguém a reservar um pedaço do jornal para você, por exemplo. Aproveite e faça outras coisas além só de ficar no sofá assistindo MasterChef. Isso é perder tempo.

4) Estude muito, mas não qualquer bobagem.

Estudar é incrível e cada vez mais importante, seja formalmente –na universidade– ou informalmente –pela leitura. Mas dedique-se a coisas que realmente interessam.

Cito aqui o jornalista americano vencedor do Pulitzer George Will: “Se você dedicou seus anos aos estudos de gênero ou à desconstrução do cinema, o meu conselho: após a formatura, nem se incomode procurando um emprego. Sua universidade não o equipou para adicionar valor à economia.”

Para jornalistas, economia e direito são muito úteis –creio que mais do que a própria graduação em jornalismo. História nunca vai mal também, ainda que de modo mais indireto. E temos uma imensa carência de gente que entenda de estatística e programação.

5) Utilize a métrica a seu favor

Nunca antes na história deste país a gente teve tantos meios de entender o comportamento do nosso leitor.

Nos anos 1990 não existiam page-views –alguns poucos veículos gastavam fortunas com pesquisas de leitura. Mas o page-view é só o começo.

As novas métricas permitem descobrir também o tempo médio de leitura. O sujeito só viu a foto e o título ou foi até o fim? Que tipo de recursos narrativos funcionam melhor para prender o leitor?

Há ainda a multiplicação do tempo médio pelos page-views: o tempo total que as pessoas, somadas, gastaram lendo um texto. Podemos analisar a frequência com que o leitor retorna, talvez o dado mais importante. É incrível, e é um mundo a explorarmos. Não sei como tantos colegas não estão nem aí para os dados. Nos nossos tempos, vai ganhar quem tiver mais sucesso ao interpretá-los.

Felizmente, as novas métricas têm mostrado que muitas pessoas se interessam por assuntos importantes, por política, economia, coisas sofisticadas. Mas você vai precisar saber colocar esses assuntos dentro de um texto envolvente –um ótimo livro sobre o assunto é “Contágio”, de Jonah Berger, publicado pela Leya. É o desafio.


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