O mundo das ideias é como um pêndulo. Vai de extremo em extremo.
Pense na aplicação da biologia ao comportamento humano. Ela propiciou um monte de barbaridades.
Uma delas foi o darwinismo social, ou seja, a ideia de que os pobres são menos aptos e que seu desaparecimento agiliza o aprimoramento genético da nossa espécie. O racismo, o eurocentrismo e o sexismo são seus primos próximos –embora, claro, no último caso ninguém defendesse o desaparecimento das mulheres, mas “apenas” que se limitassem a seu papel secundário de quem passa a vida sendo mandada primeiro pelo pai, depois pelo marido e por fim pelo filho homem.
Isso felizmente causou uma reação. Então o “espírito do tempo” se radicaliza para o outro lado. No caso do sexismo e do texto de Simone de Beauvoir citado na última edição do Enem, “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Ou seja, surge a ideia de que tudo é socialmente construído e que não há diferença biológica nenhuma entre homens e mulheres, como ela defende em “O Segundo Sexo”.
O problema é que ela escreveu isso em 1949, antes da existência dos conhecimentos atuais sobre neurociência ou hormônios.
Há três ótimos livros contemporâneos que tratam da questão: “Tábula Rasa” e “Como a Mente Funciona”, do psicológo e professor de Harvard Steven Pinker, ambos no Brasil pela Companhia das Letras, e “O Paradoxo Sexual“, da sua irmã Susan Pinker, ex-professora da Universidade McGill, no Canadá, publicado pela Best Seller.
Steven Pinker trata de um estudo com 25 meninos (com os cromossomos XY) que nasceram, por um defeito congênito sem relação com os hormônios, sem pênis e foram criados como meninas. “Todos apresentaram padrões masculinos de brincadeiras turbulentas e padrões de comportamento de homens”, escreve.
Em um caso famoso, um garoto sem pênis foi criado como uma menina sem ser informado disso. Mesmo com o “New York Times” tendo escrito nos anos 1970 que ele tinha atravessado “uma infância satisfeita como menina”, nos anos 1990 veio à tona que ele tinha se rebelado na adolescência, rasgando seus vestidos e dizendo que queria ser homem –só então seus pais contaram a ele a verdade, e hoje Bruce (ex-Brenda) está casado com uma mulher.
Mas, se existem diferenças biológicas de gênero em função de diferentes “softwares” pré-instalados rodando nas mentes de homens e mulheres, quais seriam elas? Algumas são bastante favoráveis às mulheres.
A noção de que mulheres são menos dadas à irresponsabilidade é um exemplo –em outras palavras, a testosterona leva o apetite por risco às alturas e emburrece.
Isso explica por que as mulheres batem o carro com menos frequência, como mostram as companhias de seguro. Quem tira racha, se acha o bonzão do volante, quer correr e dar cavalo de pau é, quase que invariavelmente, homem. Não é sem motivo que homem morre antes.
A diferença tem uma implicação importante no mundo profissional: a presença de mais mulheres nos conselhos de administração, diretorias e fundos de investimentos faz com que se diminua a chance de os machões jogarem a empresa no buraco ao fazê-la assumir mais risco do que deveria. Pense nos centenários bancos quebrados na crise de 2008 e nos seus gestores homens.
INTERESSES
Outras potenciais diferenças entre homens e mulheres são mais problemáticas.
A mais difícil talvez se relacione com os interesses por diferentes áreas do conhecimento. Não vou falar muito disso aqui, mas mesmo bebês primatas machos se mostram mais empolgados em brincar com coisas que se mexem –coisas parecidas com “carrinhos”– do que as pequenas fêmeas.
Entre os biólogos, há uma tendência a acreditar que não há “construção social” ou estímulo dos pais que explique o fato de desde tão cedo os meninos se interessarem mais por “coisas”, enquanto as meninas dedicam mais sua atenção a “pessoas”. Tais diferenças são percebidas ainda na maternidade –meninas recém-nascidas fixam mais o olhar nos rostos alheios do que os meninos.
A explicação evolutiva, afirmam os irmãos Pinker, seria esta: nas tribos pré-históricas em que nossos comportamentos evoluíram, ao longo de muitos milhares de anos, as mulheres passavam o dia juntas, cuidando das crianças e coletando frutas nos arredores, enquanto os homens saiam para caçar, uma atividade, claro, bem menos amorosa e mais silenciosa, porque caso contrário o bicho foge… A evolução teria selecionado tais aptidões em cada gênero.
Isso ajudaria a explicar por que há tanto homem na matemática e tanta mulher no psicologia, mas trata-se de um ponto altamente polêmico. Até porque daí a alguém concluir apressada e erroneamente que mulheres não prestam para a engenharia nem homens para a pedagogia não precisa de muito… Como diria a própria Beauvoir, “biologia não é destino” –está aqui um homem jornalista, e não programador de computadores, falando. Umas das pessoas mais espertas que já conheci na vida é uma exemplar engenheira da P&G. Nós não somos a média. Nós somos pessoas individuais. Do ponto de vista do indivíduo, a média é uma estupidez.
Em termos de inteligência, nenhum estudo ou teste apontou diferenças na média entre homens e mulheres, embora existam mais homens nos extremos –ou seja, que vão muito mal ou muito bem em provas padronizadas. Como já percebeu qualquer professor de escola, quando um homem dá para ser burro, ninguém o segura…
ASSÉDIO
As diferenças biológicas se refletem intensamente em outro ponto: o assédio sexual.
Eis algo para se refletir: quantos de nós homens ficaríamos verdadeiramente incomodados se, digamos, uma colega de pós-graduação tivesse o hábito de falar conosco repousando a mão sobre a nossa coxa? Quão agredidos nos sentiríamos sendo revistados por uma policial mulher? Se recebessemos um email sexualmente indecoso de uma ex-colega de trabalho, ainda que indesejável, sentiríamos nosso espaço sendo invadido?
O feminismo tende a apontar que o idiota que chama uma desconhecida de “gostosa” na rua está fazendo isso para reforçar uma relação de poder. Não sei se o sujeito na obra está muito preocupado com as estruturas de dominância social… Me parece que, no fundo, o cara é capaz de achar que está fazendo um agrado –e que se a vítima não gostar, ela é “mal agradecida”, “mal educada”, “mal humorada”, “mal comida”.
O ponto é que, para explicar para um abestalhado homem que ele não deve fazer essas coisas com uma mulher, não basta o ditado “não faça para os outros o que você não quer que façam com você”. É preciso convencê-lo de que a percepção de espaço pessoal das mulheres é diferente –mas, bom, isso implica assumir que as mulheres são, de algum modo, diferentes.
Como fazer isso sem acabar passando a mensagem simplista e absolutamente errada de que mulheres são seres assexuados? Corremos o risco de retroagir ao século 19 ao propagar a noção de que mulheres têm uma sexualidade mais complexa e menos vulgar do que os homens? Como explicar que mulheres podem sem problemas curtir sexo casual, mas que a sua excitação não se desperta da mesma maneira tosca e meramente visual que a dos homens? Em resumo, como defender diferenças sem que isso signifique legitimar o sexismo generalizado anterior? Eu não sei.
Mas ignorar esse problema não me parece a melhor forma de lidar com o assédio sexual.
“Parte da mente sexual masculina é a capacidade de excitar-se com a mais débil insinuação de uma possível parceira sexual”, escreve Steven Pinker. “Os zoólogos descobriam que os machos de muitas espécies estão dispostos a cortejar uma variedade enorme de objetos que têm uma vaga semelhança com a fêmea: outros machos, fêmeas da espécie errada, fêmeas empalhadas. O macho da espécie humana excita-se com a visão de uma mulher nua em filmes, fotografias, desenhos.”
“O equivalente mais próximo da pornografia no mercado de massa para as mulheres são os romances eróticos, nos quais o sexo é descrito no contexto de emoções e relacionamentos em vez de ser uma sucessão de corpos aos solavancos.”
De um ponto de vista evolutivo, mulheres e homens têm diferentes incentivos para fazer sexo. O “custo” da promiscuidade para um homem pré-histórico não era muito grande: bom, ele poderia engravidar um monte de gente por aí, o que do ponto de vista da perpetuação dos seus genes “tarados” na verdade é muito bom. Para uma mulher, vale a pena não exagerar: uma gravidez é um investimento alto, nove meses que resultam em um bebê absolutamente dependente. Biologicamente, vale a pena que o instinto sexual feminino –e, não tenha dúvida, desejo não é algo voluntário– faça com que ela escolha minimamente com quem se transa.
Isso faria, em tese, com que homens fosse menos (ou nada) criteriosos, defendem os autores. Na cabeça de um homem, por esse raciocínio, o sexo poderia facilmente ser uma coisa um tanto impessoal. Mulheres, na média, tenderiam a dar um valor um pouco maior à intimidade. Na média, óbvio, não significa todas nem sempre.
Isso fica nítido, aponta Pinker, analisando o comportamento dos gays e das lésbicas –onde se pode ver o comportamento “puro” de homens e mulheres, já que relacionamentos heterossexuais misturam as duas coisas. Na San Francisco pré-Aids, 28% dos homens gays relataram mais de mil parceiros sexuais na vida; 75% relataram mais de cem. Nenhuma lésbica relatou mais de mil parceiras e só 2% disseram ter feito sexo com mais de cem.
“Estou sugerindo que os homens heterossexuais teriam a mesma propensão que os homens homossexuais a fazer sexo mais frequentemente com estranhos, a participar de orgias anônimas em saunas e a parar em banheiros públicos para cinco minutos de felação na volta para casa se as mulheres estivessem interessadas nessas atividades. Mas elas não estão”, escreve o autor do estudo original, citado por Pinker.
Por fim, a noção de que os homens são vítimas da educação que tiveram, da maneira como foram “socialmente construídos”, também me parece generosa demais com os eles –nesse ponto, me aproximo daquelas feministas radicais que não enxergam muita esperança para o sexo masculino. Atribuir a violência masculina à sociedade que lhe disse que empurrar o amiguinho era legal, dizer que o cara trai a mulher porque “foi educado para acreditar” que não havia problema… Nossa, que dó dos homens!
Aliás, quanto à agressividade, homens são mais violentos e mais propensos a cometer crimes em todas as culturas. “Variações no nível de testosterona entre diferentes homens se correlacionam com a libido, a autoconfiança e o impulso por dominância”, escreve Steven Pinker. “Criminosos violentos têm níveis mais elevados de testosterona que os não violentos.”
É preciso dizer ainda que há duas Simones de Beauvoir. Há a que teoriza sobre a origem das diferenças entre os sexos e há que defende maior protagonismo das mulheres na vida pública. Questionar a primeira metade, obviamente, não significa rejeitar a segunda. No Fla-Flu que é a internet, não precisa nada para alguém ser acusado de estar defendendo o retrocesso nas conquistas que as mulheres conseguiram no último século.
NOTA 1
Vi muita gente criticando e celebrando a presença do texto de Beauvoir no Enem. Do ponto de vista da doutrinação, me parece óbvio que há outras coisas disparadamente mais problemáticas na prova, como a afirmação de que a globalização e a automação levam ao desemprego ou as várias críticas ao mercado. Quanto à redação, um tanto incompreensível alguém ser contra discutir violência contra a mulher.
Já o ponto de vista da esquerda, que ficou encantada com a questão, mostra que há uma transição nesse grupo: a centralidade anterior das classes sociais dá lugar à defesa de minorias, como as mulheres, os negros, os gays, os transexuais. A gente começa a ouvir moça de universidade pública que mora em mansão do papai no Morumbi dizer que o coitado do homem que veio de família sem capital, absolutamente “proletário”, é perante ela um “opressor”, porque afinal ser mulher rica é muito pior do que ser homem pobre… Quem diria que sentiríamos saudade da luta de classes!
NOTA 2
Alguns dos primeiros a espernearem quanto à “questão feminista” no Enem foram Marco Feliciano e Jair Bolsonaro. Com uma companhia dessas, fica difícil fazer qualquer crítica ao MEC –e só no Brasil que gente supostamente liberal elege militar defensor de ditadura e de censura como ídolo da causa.