A alta cultura segundo Jorge e Mateus –uma crítica ao conservadorismo

Por Ricardo Mioto

E agora algo completamente diferente: certa vez, horrorizei os colegas da editoria de Mercado da Folha ao comentar que, bom, gostava de música sertaneja.

É constrangedor, eu sei. Mas não sou o único. É até comum: gente jovem, solteira, que gosta de festas e, meio sem querer, acaba criando certa simpatia pela trilha sonora “ruim” de vários desses lugares. Você está lá, tem cerveja, gente para conhecer, está contente, acaba recebendo a música com boa vontade.

Passei muitos momentos realmente felizes em churrascos ou em festas no interior. Gosto muito de Ribeirão Preto ou de São Carlos. (Até porque em bar que toca Iron Maiden só tem homem –embora alguns cuidem tão bem da cabeleira quanto as moças da Vila Olímpia…)

Pensei nisso ao ler “A Vida na Sarjeta” (É Realizações), que comentei aqui anteontem. De maneira geral simpatizei com o livro, mas há algo que me incomoda nele.

SOFISTICADO QUEM?

No livro, o psiquiatra britânico Theodore Dalrymple defende que a sociedade ocidental perde muito ao abandonar a ideia de que existe uma cultura ou um estilo de vida superior –ou seja, naufragamos na noção de que todas as culturas ou obras culturais são apenas diferentes, mas não melhores ou piores.

Para ele, é terrível que a sociedade passe a aderir à cultura da “subclasse”, dos pobres, que seria inferior. O fim do conceito de alta cultura é o começo da decadência da nossa sociedade.

Eu também sou contrário ao relativismo cultural. Mas é tão terrível que eu conheça a letra quando começa a tocar “Chora, me liga” no rádio? Como se define a alta cultura?

Coisas hoje absolutamente incorporadas ao repertório musical da elite, “de bom gosto”, de Beatles a João Gilberto, já foram consideradas lixo ou ao menos enfrentaram muita resistência do mainstream –no caso da bossa-nova, Ruy Castro conta a história em “Chega de Saudade” (Companhia das Letras).

Um argumento é que Beethoven é muito mais sofisticado que Banda Eva, mais difícil, é por isso melhor.

Mas não me entra na cabeça que ser menos penetrável signifique ser superior –no caso da literatura, aliás, vários de nós valorizamos autores pela simplicidade e clareza da linguagem. Caso contrário, George Orwell é uma porcaria. Você pode argumentar que se trata de sofisticação de enredo, mas até aí a trama de Harry Potter também não é trivial.

Outro argumento é o da permanência. Hits populares seriam fast food que ninguém vai lembrar em 20 ou 30 anos. Grandes músicas ou livros demoram a cair no esquecimento.

Pode ser, mas há muito sertanejo que sobrevive –“Evidências”, que quase todo mundo conhece, é um exemplo. Toda uma geração ainda lembra do É o Tchan. Você pode dizer que isso é coisa dos anos 1990, ainda muito recente portanto, mas o que dizer de “Mamãe eu Quero”, de 1937, obra de tão elevado mérito poético e melódico?

Enquanto isso, muitas músicas que consideraríamos boas não permanecem. Outro dia descobri, por exemplo, uma musiquinha dos anos 1950 de Billy Blanco chamada “Tereza da Praia” (aqui, com Tom Jobim e Dick Farney) que é uma graça, mas que, tirando o próprio Ruy Castro, hoje ninguém conhece. Para cada Cartola ou Wilson Simonal salvos do ostracismo, em vida ou depois dela, para quantas pessoas talentosas não resta nada além do esquecimento?

No caso dos livros, ninguém nega que Dostoievski ou Machado de Assis têm permanência, mas o que dizer do ainda best-seller de auto-ajuda “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas”, de 1936?

Alguns até podem defender que não se trata de um livro de todo ruim, mas vamos colocá-lo, digamos, no cânone ocidental? Quanto tempo falta para ele chegar lá?

TATUAGENS E MANOS

Tudo isso não é defender que não existam coisas melhores ou piores. Claro que algo faz Dostoiévski ser melhor que “50 Tons de Cinza”. Ella Fitzgerald melhor que o Tchan. Claro que originalidade é melhor do que clichê, embora sempre se corra o risco de cair na invencionice.

Meu ponto é que é difícil definir. Que existe uma carga de subjetividade inevitável. Que não é algo matemático. Que a aleatoriedade tem um papel no sucesso e no reconhecimento. Que é complicado.

Desse ponto de vista, me incomoda a busca de Dalrymple por desqualificar qualquer coisa que não esteja ao seu gosto como inferior. É quando o conservadorismo esbarra na liberdade. Lembra um pouco a definição de H. L. Mencken para puritanismo: “O medo constante de que alguém, em algum lugar, possa estar se divertindo”.

Ele cita as tatuagens, por exemplo.

Não duvido, como ele diz, que de início elas estivessem relacionadas com a criminalidade –ele, que trabalhou muitos anos em cadeias, diz que a melhor maneira de prever se alguém vai ser preso poderia se dar pelo número de tatuagens. Mas daí a achar que o fato de gente das classes média e alta se tatuarem signifique o fim da civilização ocidental, que estaria se curvando à “subclasse”, vai muita água por baixo da ponte. O jazz também surgiu com gente pobre. Há tatuagens simpáticas e bastante delicadas, especialmente femininas, que em nada lembram a vida na penitenciária.

Outro ponto é com relação à linguagem.

Ele se incomoda com a perda do inglês clássico, aristocrático. Escreve: “Onde outrora o aspirante devia imitar a dicção dos que eram os seus superiores sociais, as classes altas agora imitam a dicção dos inferiores. Pais que enviam os filhos para escolas particulares caras, por exemplo, hoje relatam, com regularidade, que os filhos saem com dicção e vocabulário que pouco difere da gíria da escola estadual local”.

Por um lado, até concordo que há gente rica se esforçando, por algum motivo misterioso, para falar como os pobres. Acho bem estranho que até alguns jornalistas jovens, quase todos de famílias no mínimo de classe média, chamem os outros de “mano” ou “véio”, para o desespero dos editores mais veteranos. Mas esperar que a língua seja engessada é uma bobagem –não é porque adotamos o “você” em vez do “vossa mercê” que o mundo acabou.

O mundo não acabou. Nem vai acabar se as pessoas escutarem funk no Carnaval. Não me parece que agir como polícia dos costumes –não seja gay, não transe com desconhecidos, não beba, não se vista de tal jeito, vá à igreja– seja o melhor caminho para o pensamento que se propõe como contraponto à esquerda. Calma lá.

Fica liberado, portanto, ouvir Jorge e Mateus.


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