O liberalismo e uma defesa de ‘Que horas ela volta?’

Por Ricardo Mioto
A empregada Val (Regina Casé) e sua filha Jéssica (Camila Márdila)
A empregada Val (Regina Casé) e sua filha Jéssica (Camila Márdila)

Hoje eu queria relacionar o filme “Que horas ela volta?” e o livro “Um Capitalismo para o Povo” (Bei), do economista liberal Luigi Zingales, que já citei mais de uma vez aqui.

Surpreendentemente, muita gente na imprensa não gostou do filme brasileiro. A obra sobre as relações entre uma empregada doméstica e seus patrões não seria “de luta” o suficiente.

Houve quem escrevesse que o filme, apesar das “boas intenções”, era “conservador”. Houve quem implicasse com o fato de ele ter sido produzido pela Globo Filmes. Mas a crítica que melhor resume o sentimento dos insatisfeitos é a de Eduardo Escorel, na “Piauí”, para quem as transgressões de Val, a empregada, são “pueris”, pois “não ofendem ninguém”.

A solução encontrada pela personagem e sua filha –que não vou contar para não estragar o filme– parece não ser agressiva o suficiente. O que queriam os críticos? Que tacassem fogo na casa dos patrões? Matassem todo mundo? Entrassem para o PSTU?

O incômodo de quem esperava mais luta de classes e menos humor no filme se relaciona com a maneira como se enxerga a ascensão social. As posições das pessoas na sociedade são fixas ou mais ou menos fluidas?

Se são sólidas, impenetráveis, então precisamos de uma arte que mostre que o sistema inevitavelmente oprime e tem de ser jogado fora. Se as posições são maleáveis, então a arte pode explorar sem culpa a comicidade do jogo das mudanças de casta, das adaptações difíceis dos indivíduos, fazer graça do ex-pobre que não sabe se portar como rico ou do ex-rico que não sabe ser pobre.

Italiano radicado nos EUA, Zingales defende que o modelo tradicional americano é o de posições sociais maleáveis, de possibilidade de ascensão social, e que o europeu tende a ser mais aristocrático, menos aberto.

“Na Europa, as pessoas que enriquecem são frequentemente descritas como parvenus (novos-ricos). Trata-se de uma expressão pejorativa que sugere que tais pessoas não têm a mesma ‘classe’ daquelas que herdaram dinheiro e não tiveram de trabalhar duro para ganhá-lo. Em outras palavras, a riqueza tende a ser vista como privilégio”, escreve ele. “Nos EUA, quem enriquece é chamado de self-made man” –ou seja, um louvável homem que “fez a si mesmo”.

MOBILIDADE SOCIAL NO BRASIL

É difícil dizer se somos um país de self-made men ou de novos-ricos. Há muito das duas coisas.

Somos, de fato, um país do privilégio, de uma elite que usa e sempre usou o Estado para manter sua posição às custas do resto da sociedade.

Mas também somos um país de imigrantes que souberam, ao longo das gerações, deixar a pobreza para trás.

Nossa visão política é sempre muito influenciada por nossa experiência pessoal. Nesse sentido, minha família é uma das tantas que participaram do êxodo rural brasileiro. Sou a primeira geração que foi à universidade. Como tantas garotas da sua geração, minha mãe saiu do interior do Rio Grande do Sul para fazer serviços domésticos. Volte ao começo do século passado e encontre ancestrais analfabetos e sem terra.

Muitos dos nossos melhores médicos, juristas ou empresários têm uma história de mães e pais sofridos –a “geração sacrifício”, que primeiro teve de sair da pobreza para depois dar condições de estudo aos filhos. No fundo, somos todos Jéssica, a filha da empregada doméstica que, no filme, tira uma nota bastante alta no vestibular da USP.

Transição de classe social é algo que, com muita frequência, se faz em duas gerações: a primeira arruma a casa, a segunda avança para a alta qualificação.

Além disso, não somos um país de sobrenomes, embora isso varie conforme a região. Ao menos em São Paulo, mas talvez nem tanto no Nordeste, se você é rico pouco importa quem é seu pai.

Mesmo em “Que horas ela volta?”, perceba que em nenhum momento o sobrenome dos patrões é citado –algo impensável se fosse um filme estrangeiro. Na verdade, é comum, tanto no Brasil quanto nos EUA, que a elite crie narrativas heroicas sobre a história da sua família, na linha “você não sabe de onde a gente veio”, o que denota que o que dá glamour é ter “vencido na vida”, em vez de pertencer a uma longa árvore genealógica aristocrática.

Dois colegas que voltaram recentemente da Europa, de Portugal e da Inglaterra, tinham o mesmo ressentimento. Primeiro, se impressionaram com o desapego dos europeus a sinais exteriores de status tão comuns nos EUA e no Brasil –carrão, roupas caras, ostentação. Depois perceberam que isso não significa que não exista status –ele apenas se dá de outras formas, por sobrenomes compostos, parentes influentes ou brasões pomposos.

PROBLEMAS

Claro que o processo brasileiro é imperfeito.

Alguns “novos-ricos” do Sul tendem a achar que sua história prova que há certa justiça social, mas sempre foi muito mais fácil para as famílias de colonos gaúchos ou catarinenses: o mero fato de normalmente sermos (bem) brancos, em um país com tantos problemas raciais, já é suficiente nos poupar de muitos constrangimentos crueis.

Ainda me impressiona como certa xenofobia paulistana é totalmente aplacada quando o forasteiro é do Sul, como quem diz “vocês tudo bem, vocês são uma pobreza loira de sotaque bonito”.

Muito mais grave do que isso, a péssima educação básica pública brasileira –um pouco menos pior no Sul– condena muitos jovens pobres brasileiros a começarem a corrida muito atrás daqueles que vão às escolas particulares.

Por fim, os pobres em busca de ascensão são sempre reféns da situação econômica ao longo da sua juventude. O próprio filme de Anna Muylaert parece um pouco fora de timing nesse sentido: conta a história de uma “nova classe C” que, em 2015, já está voltando à pobreza.

Todas essas imperfeições dos nossos mecanismos de mobilidade social servem de combustível para argumentos contra o livre mercado, o capitalismo, os “neoliberais”. Vá a uma universidade da “elite progressista” e veja como há gente de esquerda ou crítica à noção de meritocracia.

“Vários experimentos com voluntários mostram que participantes que recebem dinheiro após um esforço árduo se mostram bem menos dispostos a dividi-lo. Isso ajuda a explicar as preferências redistributivas da chamada esquerda-caviar: jovens herdeiros que nunca se sustentaram e defendem o socialismo para atenuar sua sensação de culpa por terem uma vida privilegiada”, escreve Zingales.


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