A desmotivação do funcionário público e o vento na cara

Por Ricardo Mioto

Muito se fala sobre o quanto o país perde ao botar gente altamente instruída para trabalhar em cargos burocráticos no ineficiente setor público. É gente, afinal, que poderia estar gerando riqueza (e empregos, impostos) no setor produtivo.

Mas pouco se comenta sobre o que perdem as próprias pessoas que, estimuladas pelos salários e pela estabilidade, acabam assumindo esses cargos.

Em São Paulo, bom exemplo são os funcionários do Metrô estatal, de um lado, e da linha 4 e dos guichês de recarga do Bilhete Único, geridos pela iniciativa privada, de outro.

O que aquele pessoal nitidamente mais instruído –arrumadinho, concursado, que fala bom português e provavelmente estudou– está fazendo trabalhando no guichê da estatal?

É estável, certo, mas e a perspectiva de passar o resto da vida trocando dinheiro? Nos guichês privados, quem atende são pessoas bem mais simples, visivelmente menos instruídas, que provavelmente recebem salário mínimo –e que realizam sem dificuldades o serviço.

Além da perda de eficiência para o país, que subaproveita gente qualificada, quão intermináveis devem ser as horas de trabalho dos funcionários da estatal? Quantas vezes olham para o relógio ao longo da tarde?

Além disso, o que eles estão aprendendo? A tabuada do R$ 3,50?

VENTO NA CARA

O grande mérito de empresas como a Ambev, como mostra o ótimo “Sonho Grande”, da jornalista Cristiane Correa, está em perceber que a satisfação no trabalho está diretamente relacionada com a sensação de estar progredindo, aprendendo, fazendo coisas cada vez mais sofisticadas.

Ou seja, a sensação de “vento na cara”, de que o esforço vira desempenho, e desempenho vira recompensa. Quem tem ambições gosta de jogar esse jogo –outro ótimo livro sobre o assunto é “Paixão por Vencer”, do ex-presidente da GE Jack Welch.

Mas “vento na cara” é quase impossível no governo, argumenta o economista Luigi Zingales em “Um Capitalismo para o Povo”, recém-lançado pela Bei.

Uma empresa em um mercado competitivo, afirma, precisa promover e estimular gente talentosa e dedicada, ou será atropelada pela concorrência.

“No setor público, porém, os benefícios conferidos pela meritocracia são relativamente pequenos se comparados aos benefícios conferidos pelo compadrio. Se eu nomear meu amigo para um cargo, ainda que ele não seja especialmente competente, perco pouco e ganho bastante poder. A meritocracia é algo difícil de sustentar no governo”, diz ele –o governo, afinal, não precisa ser eficiente; não é que outro governo vá roubar seus “clientes”…

E, por mais boa vontade que alguém possa ter, quase nada neste mundo é eficiente se não precisa ser eficiente.

Uma matéria recente do “Estado de S. Paulo” mostrou que o bandejão da USP consegue a proeza de gastar R$ 17,50 por refeição –era mais barato pagar a conta de um restaurante por quilo para todos os alunos, e ainda sobrava dinheiro para um Chicabon.

Gastam tanto porque o dinheiro é público, escreve o prêmio Nobel da economia Milton Friedman, na reedição de “Livre para Escolher” lançada agora pela Record.

“Quando alguma coisa é de todo mundo, ela não é de ninguém e ninguém tem interesse em manter e melhorar as condições de tal coisa. É por isso que os edifícios da União Soviética ou as moradias populares nos Estados Unidos parecem decrépitos um ano após a sua construção; é por isso que as máquinas do governo quebram e estão em permanente necessidade de conserto.”

MESMO OS DIPLOMATAS

Ah, mas você –e o Milton Friedman– estão pegando um cargo e casos pontuais e generalizando para todo o serviço público, poderá dizer o leitor.

Claro que existem trabalhos mais sofisticados no governo. Mas, de uma forma ou de outra, a politicagem vai se sobrepor à eficiência quase sempre. O sujeito recém-aprovado no concurso inevitavelmente terá suas ambições pessoais machucadas.

Peguemos os prestigiados diplomatas e os funcionários da Receita Federal.

No primeiro caso, veja este texto, curiosamente intitulado “Por que não ser diplomata” e escrito por um deles:

Saiba que, como diplomata, a política externa que você “fará” irá se resumir, durante uns 80% da sua carreira, a cumprir instruções sobre uma pequena parcela de temas pontuais, imersos em uma enormidade de ações de política externa sobre as quais você terá nenhum controle e nível limitado de informação. (…) Um diplomata é um burocrata internacional, senhores. Os tempos da diplomacia costumam ser bastante lentos, e o resultado do trabalho nem sempre imediato, satisfatório ou reconhecido.

No caso da Receita, outro dia precisei de um número do recibo do Imposto de Renda e tive de ir até lá pessoalmente –pois é. Na primeira tentativa, estavam em greve. Na segunda, fiquei mais de uma hora esperando.

No guichê, fui surpreendido. Estava lendo “Chega de Saudade”, do Ruy Castro, e a atendente perguntou se eu já tinha lido “o da Carmen”. Gosto dessa intimidade com os livros –não é “o livro sobre a Carmen Miranda, desse autor”, é só “o da Carmen”. Uns meses atrás, fui a uma livraria e pedi, todo pedagógico: “Por favor, estou procurando um livro chamado ‘Estado de Narciso’, escrito por Eugênio Bucci”. O gerente deu um berro para o vendedor: “Ô Carlos, tem o Bucci novo aí?”. Coisa boa. “O Bucci novo.”

Comecei a conversar com a moça da Receita. Contou que era formada em nutrição. Devo ter feito uma cara surpresa, porque ela disse que era comum que gente de carreiras “inesperadas” trabalhasse ali –um outro sujeito era geólogo.

Um analista tributário lotado no atendimento ao público ganha cerca de R$ 10 mil iniciais (não confundir com o auditor, R$ 16 mil). A questão inevitável é esta: uma vez que a pessoa se acostuma com o salário –e a gente sempre se acostuma–, era ficar  catando número para contribuinte distraído a vida que esse pessoal quis?

Ao se curvar –ou se deixar cooptar– pelos sindicatos, elevando salários de funcionários públicos muito além do bom senso, governos acabam atraindo gente boa demais para esses cargos.

Perde o país, mas perde também o concurseiro vítima dos seus sonhos.


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