Antes de tudo, veja esta coisa mais fofa do mundo:
É um cachorro com um nome dos mais pomposos: o cavalier king charles spaniel.
A raça é recente, surgiu na Inglaterra apenas no século passado. É parente do cocker spaniel, mas menorzinho, não tem mais do que uns 30 cm de altura.
Imagine você chegando em casa enquanto esse peludinho com cara pidona faz festa. Uma graça, não?
A história não é tão bonita, na verdade.
Os cruzamentos sequenciais de bichos com as características desejadas criam vários problemas de saúde nos cachorros de raça. Eles sofrem. E o caso do cavalier king charles é extremo.
Problemas genéticos fazem com que eles tenham insuficiência cardíaca –a maioria dos animais morre prematuramente por causa do coração. É comum que os bichos morram antes de completar dez anos.
Mas o pior e mais bizarro é isto: seu cérebro é muito grande para o seu crânio. Isso causa dores de cabeça e, em alguns casos, paralisia. Um estudo holandês mostra que o problema deixa a área ao redor da cabeça, pescoço e ombos muito sensível, o que faz o bichinho ficar choramingando e tentando se arranhar.
Como isso aconteceu? Uma boa explicação se encontra no livro “Domesticated”, do neurobiólogo Richard Francis, recém-lançado nos EUA e que o colega Gabriel Alves gentilmente me trouxe de presente –bom, “presente”, “gentilmente”, porque mandou a nota fiscal para o jornal… Escrevi sobre ele na edição de sábado da Folha.
“No fim do século 19, todas as raças se pareciam mais com um cachorro genérico. Cachorros pequenos eram maiores, e os maiores eram menores… Diferenças nos esqueletos não eram tão exageradas. Mas tudo mudou com a fundação, em 1874, do primeiro kennel club de Londres. Esse clubes, em tese, serviriam para manter os padrões de raça existentes. Mas o que aconteceu foi bem diferente”, escreve Francis. “O seu efeito foi ampliar muito as diferenças entre as raças, por meio de competições nas quais os cachorros com traços mais extremos eram premiados e então selecionados para se reproduzir.”
Isso criou uma confusão genética. No afã de conseguir bichos pequenos, por exemplo, uma consequência pode ser meramente espremer os ossos, reduzindo o espaço para o cérebro ou outro órgãos.
É verdade que cruzamentos repetidos entre cães campeões, muitas vezes entre irmãos ou mesmo entre pais e filhos, serviram para “purificar” traços desejados –está lá eternizado aquele focinho bonito. Mas isso também causou o acúmulo de mutações genéticas deletérias.
É como em humanos: reproduzir-se em família aumenta o risco de problemas. Aliás, os estudos mostram que, inconscientemente, nós nos sentimentos atraídos pelo cheiro de pessoas com o sistema imunológico diferente do nosso. Eventuais filhos terão assim um sistema mais variado e, portanto, um arsenal maior contra eventuais doenças. E pense que, no caso dos cães de raça, não se trata de um incesto aqui ou ali. São vários, em série, por gerações.
“Virtualmente todas as ‘raças puras’ têm problemas genéticos. O câncer é tão comum entre cães de raça que, se estivéssemos usando padrões humanos, diríamos que ele é epidêmico”, escreve Francis.
Um estudo americano com 24 mil cachorros mortos mostrou que os vira-latas vivem em média 27% a mais do que os cães de raça –e isso desconsiderando que estes, muitas vezes bem caros, talvez sejam tratados melhor.
Veja o caso do buldogue, para citar uma raça conhecida no Brasil.
A cara característica do bicho pode ser divertida, mas significa vários problemas respiratórios, porque o focinho pequeno dificulta o fluxo do ar. Isso atrapalha a refrigeração do animal, o que faz com que buldogues com frequência morram por “superaquecimento”.
A boca é pequena demais para acomodar os dentes. Os olhos não se encaixam perfeitamente no crânio. As dobras excessivas da pele, também levadas a um nível exagerado por criadores, são um paraíso para infecções.
Mas o mais impressionante de tudo é que a cabeça do buldogue é grande demais para o canal por onde ele tem de nascer, o que leva à necessidade de cesáreas.
“Tudo isso é consequência da obsessão com a pureza das raças”, escreve o autor americano.
Claro que não se trata de impedir que cães de raça existam. Até porque boa parte das raças não surgiram pela ação de criadores profissionais. A diferenciação se deu em função das necessidades locais –cães de caça, de companhia, pastores– e das condições geográficas –frio, calor, montanha.
É também sem dúvida útil para o dono ter certa previsibilidade sobre o comportamento do bicho. Um labrador não vai engolir seu filho, e o rottweiler não vai ficar amigo dos bandidos que tentarem entrar na sua casa.
Além disso, esses cães são lindos, até porque a seleção artificial promovida pelos criadores foi, afinal, direcionada para isso. Alguns entusiastas da adoção até podem dizer que os cachorros são todos bonitos da mesma forma, que cada um é bonito ao seu jeito, mas isso é ver o mundo de um jeito cor-de-rosa.
Inevitavelmente alguns bichos –assim como algumas pessoas– serão mais bonitos que os outros, e é natural que o dono queira que o cachorro mexa com seus sentimentos estéticos. Beleza importa –fico de uma hora escrever sobre a defesa da estética feita pelo filósofo britânico Roger Scruton e pela neurocientista Nancy Etcoff.
A questão é quanto sofrimento estamos causando aos bichos só para saciar nosso desejo de levar ao extremo determinados traços.
Talvez manter as raças tradicionais, que ao menos tiveram vários séculos para se adaptar, já estivesse mais do que de bom tamanho.
Claro que não temos como saber qual o grau de felicidade dos cachorrinhos, mas a impressão de que vira-latas aparentam alegria talvez não se deva, como diz o senso comum, ao fato de eles ficarem satisfeitos só por terem um lar.
Talvez a ausência daquela dor de cabeça insuportável seja providencial na hora de balançar o rabo alegremente.
Parece que a moda agora é chamar vira-lata de SRD (de “sem raça definida”). Vá lá que veterinários escrevam assim em textos técnicos, mas que essa sigla horrível passe a ser utilizada nos jornais ou na rua é uma bobagem.
Vira-lata é uma das palavras mais divertidas da língua portuguesa, no nível do nhenhenhem e do escarafunchar. Que chatice.