Ainda a autobiografia de Oliver Sacks (“Sempre em Movimento”, pela Companhia das Letras): me chamou a atenção um trecho em que ele conta das correspondências que trocava com a família quando deixou a Inglaterra para viver na América do Norte.
“Eles reagiram [à minha saída de casa] com grandeza, mas também manifestaram tristeza pela nossa separação, com palavras que me destroem ao lê-las cinquenta nos depois –palavras que devem ter custado muito à minha mãe, pois ela raramente falava de seus sentimentos.”
O neurocientista britânico, que morreu no último domingo (30), transcreveu uma carta de sua mãe:
Meu querido Oliver,
Muito obrigada por suas várias cartas e cartões. Li todos eles –com orgulho por sua habilidade literária, com felicidade por você estar aproveitando, mas com um grande elemento de pesar e tristeza à ideia de sua ausência prolongada. Quando você nasceu, as pessoas nos congratulavam pelo que consideravam uma família maravilhosa de quatro filhos! Onde estão todos vocês agora? Sinto-me solitária e desolada. Fantasmas habitam esta casa. Quando entro nos vários aposentos, sinto-me tomada por uma sensação de perda.
O pai de Sacks também escreveu:
Quando digo que estamos conformados com uma casa vazia, trata-se de uma meia verdade, é claro. Nem preciso dizer que sentimos muito a sua falta, o tempo todo. Sentimos falta da sua presença alegre, dos ataques vorazes à geladeira, de você ao piano, de você levantado pesos pelado em seu quarto, de suas saídas inesperadas à meia-noite de moto. Quando contemplamos esta casa grande e vazia, sentimos um aperto no coração e uma profunda sensação de perda. Apesar disso, entendemos que você tem de abrir seu caminho no mundo.
Esse finalzinho da carta do pai revela a difícil oposição de sentimentos que se passa no interior de um pai ou uma mãe quando o filho sai de casa: embora vê-lo ficando independente e buscando seu próprio caminho certamente traga alegria e orgulho, até porque essa é a ordem natural das coisas, por outro lado o afastamento é inevitavelmente doloroso. Não tenho filhos, mas imagino que não exista silêncio maior e mais incômodo do que o de um quarto onde um filho já não mora mais.
As dores do ninho vazio, aliás, parecem surgir muito antes de os filhos irem embora de casa. Os pais começam a perdê-los muito antes. A busca por distanciamento começa na pré-adolescência, talvez até antes.
Lembrei de um texto que vi na “Zero Hora” uns meses atrás, do catarinense Marcos Piangers, autor de “O Papai é Pop” (da editora Belas Letras, que ainda não li):
De forma inevitável, [nossos filhos] crescem e dolorosamente se envergonham da época em que eram crianças. Se antes adoravam dormir na mesma cama, agora querem um quarto só pra eles. Se antes queriam histórias para dormir, agora voltarão tarde de carona com amigos.
Pedirão que os pais não os deixem muito perto da escola. Que não apareçam nas festas para buscá-los. Que não atendam o telefone quando os amigos ligarem. Que viajem mais e deixem a casa disponível. O filho vai expulsando você da sua própria casa. Vai sistematicamente dizendo que você o constrange.
Ou seja, para piorar a situação dos pais, jovens não são seres particularmente sensíveis aos sentimentos alheios e estão de qualquer forma muito mais preocupados com o que se passa na cabeça dos amigos e namorados do que na daqueles velhos babões que habitam a sua casa.
Dessa forma, a busca pela autonomia ocorre de uma maneira meio brutal, talvez até cruel. Nas palavras de Marcos: “Que se lembrem das fraldas, das mamadeiras, das madrugadas. Que se lembrem dos beijos nos machucados. Das vezes em que você correu pra ajudar. E que, um dia, sintam saudade e voltem. Estaremos sempre aqui.”
Quando somos crianças, os pais são heróis, e os seguimos para todos os lados –conheço o caso de uma moça que, quando pequena, ia atrás da mãe até no banho…
Depois ficamos chatos, e só voltamos a valorizá-los como eles merecem –e a entender tanto os seus imensuráveis esforços quanto suas inevitáveis fraquezas– depois de adultos. Salvo exceções louváveis, a adolescência (e, para muitos, boa parte da juventude) é um tempo de ingratidão.
Na música, a angústia de uma casa vazia é tema frequente. Embora provavelmente escrevendo de um ponto de vista mais romântico do que paternal, pense naquela música de Arnaldo Antunes, “A Casa é Sua”:
“Não me falta cadeira, não me falta sofá. Só falta você sentada na sala, só falta você estar. Não me falta parede, e nela uma porta pra você entrar. Não me falta tapete, só falta o seu pé descalço pra pisar. (…) Não me falta cachorro uivando só porque você não está. Parece até que está pedindo socorro –como tudo aqui nesse lugar.”
Pior é que Antunes devia estar sofrendo mesmo. Há vários anos, entrevistei o economista Daniel Kahneman, prêmio Nobel da economia e autor de “Rápido e Devagar” (Objetiva), para uma reportagem aqui da Folha.
Ele tinha liderado um estudo com o impressionante número de 450 mil americanos tentando buscar explicações para a felicidade e a infelicidade. De longe, o fator mais relacionado com a tristeza era a solidão, mais do que dores de cabeça crônicas –se você tiver de escolher, fique com a segunda opção.
Ou não tenha filhos, porque uma hora eles crescem –certo, sejamos honestos, na pesquisa de Kahneman filhos eram considerados um fator de felicidade, embora estivessem curiosamente pior posicionados do que ter plano de saúde.
SACKS E A MEDICINA
É de impressionar quantos médicos e pesquisadores foram salvos de certa desilusão com a profissão por Oliver Sacks. Nesta segunda-feira, Suzana Herculano-Houzel escreveu sobre isso na Folha. Ainda no domingo, recebi por e-mail esta interessante mensagem do médico Cláudio Galvão de Castro Júnior, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica:
Para mim, o ano mais complicado da faculdade foi o primeiro. Tinha dificuldade em decorar nomes de aminoácidos, ossos e músculos.
Naqueles dias cinzentos, um professor mencionou um livro que logo fui comprar. “O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu” me deu um grande alento e ânimo. A obra, que descreve pitorescos casos da neurologia, me ajudou a perceber que o volume enorme de informações do curso de medicina, aparentemente desconexas, iria fazer sentido.
Em sua recém-publicada biografia, ele escreve sobre o medo que teve de não conseguir se formar e sobre os pesadelos que o traziam de volta aos tempos de provas e exames finais, como se estivesse empacado em um eterno período estudantil, mesmo depois de 50 anos de formatura.
Quando eu estudava, vivi esse mesmo medo –e igualmente tenho pesadelos idênticos até hoje.
A ele, onde quer que esteja, meu agradecimento por sua ajuda indispensável a minha formação médica e humana.