Antes de morrer, Sacks escreveu sobre a sua difícil vida amorosa

Por Ricardo Mioto

Na sua autobiografia recém-lançada, o neurocientista britânico e autor de vários best-sellers sobre a mente Oliver Sacks, que morreu neste domingo (30) aos 82 anos, dedicou amplo espaço à sua vida amorosa e sexual.

É honesto. Uma biografia que não trate amplamente de sexo é uma omissa. A busca por transar e amar explica muito do que somos e fazemos.

Até por isso, o livro apresentou um Oliver Sacks que não conhecíamos. “Sempre em Movimento” é muito diferente dos clássicos sobre a mente do autor, como “O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu”.

A obra mostra um Oliver frágil, inseguro, frequentemente rejeitado, durante um período inclusive viciado em drogas. Causa perplexidade descobrir que um autor tão bem sucedido tenha carregado tanta introversão.

Deve ter sido uma vida difícil a dele.

Gay em uma época em que isso era crime no Reino Unido –o brilhante matemático Alan Turing foi castrado por isso–, ouviu da mãe que ele era uma abominação após dizer, em abstrato, que tinha uma “sensação” de preferia garotos. “Preferia que você nunca tivesse nascido”, disse ela, que também era médica.

Mas Sacks não era apenas gay. Era tímido e um tanto desinteressado por sexo. Já na escola, evitava festas que terminassem em afagos e amassos. Seu melhor amigo o considerava assexuado. Até pela genialidade, ele lembra um pouco o Sheldon, aquele personagem de “The Big Bang Theory”.

“Enterrado em química e depois em biologia, eu não percebia muito o que se passava em volta –ou dentro– de mim e não tinha nenhuma paixão por ninguém na escola, embora ficasse excitado com uma reprodução, no alto de uma escadaria, em tamanho natural do belo e musculoso Laocoonte nu.”

Seus irmãos tentaram levá-lo a uma prostituta francesa, porque “uma boa trepada me botaria nos eixos”, escreve Sacks. A garota de programa entendeu o que estava acontecendo, e eles passaram meia hora tomando chá.

Talvez o medo de se assumir homossexual –aliás, o anterior medo de ser homossexual– tenha papel nisso: “As palavras de minha mãe me perseguiram durante grande parte da minha vida, instilando um sentimento de culpa em algo que deveria ser uma expressão de sexualidade livre e prazerosa.”

PRIMEIRO AMOR

Sacks contou sua (um pouco triste) história amorosa de um jeito inocente, até fofo.

Aos 20 anos, se apaixonou por um poeta de 24. Um dia, Sacks “se declarou”. Richard ouviu e respondeu com um “eu sei e agradeço; não sou assim, mas também te amo, à minha maneira”.

O pobre Sacks, resignado, se contentou com a amizade.

Continuaram conversando, até que Richard apareceu com um caroço na virilha, perguntando se Sacks, então aluno de medicina, poderia dar uma olhada.

Era um linfoma, e Richard morreria 15 meses depois –passou seus últimos dias com uma cantora irlandesa por quem tinha se apaixonado, sem falar com Sacks.

VIRGINDADE

Aos 22 anos, Sacks ainda era virgem e decidiu ir a Amsterdã para resolver o problema. Os holandeses já eram uma sociedade bastante liberal, e a homossexualidade já era bem aceita por lá.

Meio perdido, Sacks vai a um bar e toma um porre sem tamanho. Até o dono do lugar fica preocupado e pergunta se ele precisa de ajuda para voltar, mas ele diz que seu hotel fica próximo.

Desmaia em algum lugar desconhecido e acorda, no dia seguinte, na cama de um holandês, que ele chamou de “o meu salvador”. O sujeito conta que o viu largado na sarjeta, levou-o para casa e o “sodomizou”. Contou que foi bom, embora Sacks não lembrasse da nada, e ainda lecionou: “Não precisa se entupir de álcool, desmaiar e ficar estendido na sarjeta. É uma coisa muito triste e até perigosa. Espero que você nunca mais faça isso.”

Por incrível que pareça, Sacks fica feliz, se sente libertado e, nas suas palavras, “mais leve”.

De volta a Londres, Sacks conhece um rapaz por um anúncio colado na rua, mas não se envolve. Depois, muda-se para San Francisco, onde descobre uma animada comunidade gay. Fica apaixonado por um militar, Mel, com quem dividia um apartamento. Sacks tinha o hábito de fazer massagens em Mel; certo dia, se empolga e acaba ejaculando nas costas do rapaz. O colega de quarto fica irritado e vai morar com uma mulher com quem havia se envolvido.

“Senti-me desesperadamente sozinho e rejeitado”, escreve Sacks, que começou a se drogar, tomando especialmente anfetaminas, para tentar esquecê-lo.

Oliver Sacks em Nova York em 1961, na foto que estampa a capa da edição americana do seu novo livro
Oliver Sacks em Nova York em 1961, na foto que estampa a capa da edição americana do seu novo livro

Em uma viagem de volta a Londres, já em 1973, Sacks tem um breve caso com um turista americano. Depois disso, ficaria 35 anos sem fazer sexo.

Sacks não sabia apontar direito a razão disso. Especulava que tivesse algo a ver com sua personalidade: “Minha tendência é ficar num canto, me fazer invisível, esperar que passe desapercebido. Nos anos 1960, isso era um problema, quando ia a bares gays para conhecer alguém; ficava agoniado, e saía depois de uma hora, sozinho, triste, porém de certa forma aliviado. Mas, se encontro alguém com os interesses parecidos com os meus, em geral científicos –vulcões, medusas, ondas gravitacionais, coisas do gênero–, então entro imediatamente em uma conversa animada.”

ENVELHECER

A abstinência de Sacks acabou em 2008, quando ele conheceu o escritor Bill Hayes. Veja como ele disse ter se sentido, do alto dos seus 75 anos: “Pensava em Bill quase que ininterruptamente; nos dias em que ele não podia me telefonar no horário habitual, eu ficava aterrorizado com a ideia de que ele teria morrido em um acidente, e quase chorava de alívio quando, uma ou duas horas depois, ele me ligava.”

Eles ficaram vários anos juntos. Ao olhar para a sua vida, talvez Sacks pudesse ver certo ridículo nas suas paixonites juvenis. Mas não é o caso.

“Sinto saudade da Califórnia. Mas desconfio que essa saudade que sinto dos lugares onde vivi seja, na verdade, saudade da juventude, de uma época diferente, de estar apaixonado, de poder dizer ‘tenho um futuro pela frente’”, escreve Sacks.

Em fevereiro, Sacks publicou um tocante texto no “The New York Times”, reproduzido na Folha, contando que já estava perto da morte, com um câncer terminal no fígado.

“Fiquei mais e mais atento, nos últimos dez anos, à morte de contemporâneos meus. Minha geração está de saída, e cada uma dessas mortes eu senti de forma abrupta, como se uma parte de mim me fosse arrancada”, escreveu ele.

“Não posso fingir não ter medo. Mas o sentimento que predomina em mim é a gratidão. Eu amei e fui amado; tive muito e dei muito em troca; eu li, e viajei, e pensei, e escrevi. Acima de tudo, eu fui um ser senciente, um animal pensante sobre este belo planeta, o que, por si só, já foi um enorme privilégio e uma aventura.”

Oliver Sacks, em sua casa, em 2001 (Jurgen Frank/Corbis)
Oliver Sacks, em sua casa, em 2001 (Jurgen Frank/Corbis)

LIVROS CITADOS NESTE TEXTO

– “Sempre em Movimento”, de Oliver Sacks (Companhia das Letras; R$ 49,90, na Livraria da Folha).
Resumo em uma frase: Agora o fim está próximo; apesar da timidez, foi uma jornada muito prazerosa

– “O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu”, de Oliver Sacks (Companhia das Letras; R$ 43,90, na Livraria da Folha).
Resumo em uma frase: Problemas neurológicos podem levar pacientes a quadros extremos, e isso nos ajuda a entender quem somos