Olá! Este é um blog sobre livros de não ficção. Ou seja, em vez literatura, tratarei de gente que quer dar palpite sobre economia, direito, ciência, saúde, política ou o que vier.
E, se é para dar palpite, chamem Alain de Botton.
O filósofo francês é profissional: já escreveu livros sobre arquitetura, Proust, amor, sexo, arte, trabalho, religião, aeroportos e revenda de produtos Avon. Tá, Avon é exagero meu, mas todo o resto é verdade.
O seu último livro, agora lançado no Brasil, é sobre notícias.
BOTTON E A FLORESTA
Para ser franco, eu não sei o que pensar direito sobre Alain de Botton.
Ele é um sujeito meio idealista demais. Meio francês demais. Não para de falar em felicidade, na beleza de contemplação, no prazer da simplicidade. Soa um pouco ingênuo.
Fico imaginando Botton indo à padaria. Deve voltar chorando, emocionado. Tanto simbolismo, afinal, em um só pão –esforço produtivo de tantos, do produtor de trigo ao padeiro, a família à mesa, o prazer da gastronomia, o amor na banalidade…
No seu último livro, ele fala que deveríamos dar mais atenção às “maravilhosas espécies” que nos cercam, como “gaviões, gansos, gafanhotos e criancinhas”, que seriam “contrapesos para nossas ansiedades e nosso egocentrismo”. Botton, o tarado da floresta…
Mas os livros do sujeito acertam no diagnóstico, eu acho. Como “Notícias: Manual do Usuário”, que parte de um pressuposto que me parece razoável: o noticiário com frequência tende a ser chato, às vezes tedioso. Por quê?
POR QUE NÃO ESTAMOS NEM AÍ PARA UGANDA
Alain é um crítico da, digamos, mediocridade dos fatos.
“O que devemos considerar digno de mérito em uma organização jornalística não é a simples capacidade de coletar fatos, mas o talento de nos fazer ver a sua relevância.”
É que nem dar antibiótico para cachorro: você precisa enfiar no meio de um bife suculento. Mas muitos jornalistas não parecem preocupados em fazer um texto saboroso. Se o leitor não estiver interessado, pior para ele.
Botton cita um exemplo. A BBC tem repórteres especializados em diversos países, entre eles Uganda. Ele foi à redação da instituição britânica.
“Saboreando um bolo de banana generosamente oferecido por um colega da BBC Nigéria, tentei deixar transparecer, com a maior gentileza possível, minha incapacidade de desenvolver interesse pelas notícias que a equipe ali reunida coletava com tanto zelo e tentava transmitir a um mundo indiferente. Entre essas notícias, naquele dia havia um relato sobre o roubo descarado de 12 milhões de dólares, destinados à ajuda humanitária, no gabinete do primeiro-ministro de Uganda.”
Enquanto as notícias sobre temas como neve no Reino Unido, David Bowie ou família real têm milhões de visualizações, uma notícia sobre a África que tem 3.000 acessos já é um sucesso.
Um repórter dá uma resposta da Alain que merecia um soco: vá visitar Uganda para despertar o interesse. Ou seja, nossos textos são tediosos mesmo; o leitor que se vire — ou a BBC que pague uma passagem até a África para cada um.
Alain, porém, talvez influenciado pelo amor dos bichos da floresta, tem uma reação menos agressiva do que eu, aceita o convite e vai para Uganda.
Chegando lá, descobre uma monte de coisas interessantes: os coloridos anúncios pintados nas muros e onipresentes pelas cidades, os nomes dos africanos –o meu favorito é o do ex-presidente nigeriano Goodluck Jonathan–, as enormes figueiras plantadas no meio do trânsito ou as filas para tudo, que acabam fazendo parte da vida social local.
Aliás, sobre os nomes: quando perguntaram ao pai do presidente nigeriano por que ele tinha dado esse nome ao filho, ele deu esta profunda e satisfatória explicação: “Eu pensei: este garoto vai ter sorte. Então eu resolvi chamá-lo de Goodluck [boa sorte]”.
A mulher de Goodluck se chama Patience. Para citar um outro exemplo, muitos africanos se chamam Sunday. A criatividade paterna com os termos em inglês é comum.
Por que o tom seco dos despachos das agências de notícias ignora tudo isso? Alain aposta em um problema ideológico.
MEDO DO EXÓTICO
“Para evitar soar condescendente e racista, o noticiário tratou de se distanciar da literatura de viagem e de toda a parafernália correspondente que remetia ao exótico. Para não supervalorizar nem denegrir outras culturas, optou-se por um tom sempre neutro, sem nunca manifestar espanto com os modos e práticas dos longínquos recantos do mundo sobre os quais informa”, escreve o filósofo.
É o famoso caso do repórter que, quando volta da rua, da viagem ou da entrevista, conta coisas espetaculosas para a mulher –“você não vai acreditar, o cara era pirado, dava cerveja para o cachorro”, “cheguei lá na favela e todo mundo tava comentando House of Cards, riram de mim por não ter Netflix”, “o filho pequeno do senador ficava interrompendo a reunião dos líderes do partido porque queria ver Cocoricó”. Na hora de escrever o texto, porém, despeja um relatório insosso sobre o coitado do leitor.
Beira a crueldade: você tem um monte de detalhes divertidos para contar, alguns que inclusive traduzem tendências e traços de personalidade de profundo interesse jornalístico, mas priva o leitor disso, em nome de um jornalismo sério que supostamente deve ser asséptico.
“O repórter nunca parece perplexo por se encontrar onde está; apenas aceita, sem qualquer comentário explícito, o fato de estar enviando uma matéria de um lugar onde as noivas oferecem uma cabra aos noivos no dia do casamento”, continua Botton, exemplificando com o jornalismo internacional.
“Se sobrevém algum dano a quem contemple outro país pelas lentes distorcidas de um correspondente que manifeste suas mais francas reações, não é nada em comparação com o sufocante tédio causado pelos repórteres declaradamente imparciais e precisos.”
Eu só não sei se concordo com ele que a busca pela imparcialidade é inimiga de um texto gostoso de se ler.
Até me parece verdade que a parcialidade, nas sua forma mais pura, indica “apenas a presença de um método de avaliar os acontecimentos orientado por uma tese coerente sobre o funcionamento e o florescimento da vida humana”. Mas não me parece que buscar ouvir todos os lados ou ponderar visões dissonantes faça mal para um texto. Pelo contrário. Se a imparcialidade plena é impossível, um texto pode se beneficiar de uma pluralidade de parcialidades confrontadas, creio.
UM JORNALISTA QUE DELEITA
Esquecendo essa questão, porém, é difícil discordar que talvez os jornalistas devessem aprender algo com o Cícero, citado por Botton em “Religião para Ateus”, para quem não bastava ao orador informar –ele deveria também persuadir e especialmente deleitar.
Não é só um problema dos jornalistas, afirma Botton, mas também dos professores.
Eles também têm muito a aprender com os padres, que sabem como ninguém atingir os dilemas pessoais e éticos mais urgentes das pessoas. Veja o gosto do cristianismo por contar parábolas e histórias de pessoas em vez de meramente relatar as diretrizes de Deus para os mortais, aceitem aí ou vocês vão pro inferno, e pronto.
Nosso gosto por ouvir histórias, aliás, parece ser biológico, como defende Jonathan Gottschal em “The Storytelling Animal”. É um pouco do que nos faz humanos.
Claro que nem todos jornalistas são tediosos. Um dos meus autores favoritos é o americano Bill Bryson. Seu “Crônicas de um País Bem Grande” mostra como é possível escrever de forma interessante mesmo sobre um país tão batido quanto os Estados Unidos.
A alternativa é matar os outros de tédio –luxo que os professores até podem se dar, porque afinal o aluno vai ter de aguentar se quiser se formar; desistir de um texto jornalístico, porém, é fácil, e o risco é acabarmos irrelevantes e desempregados.
LIVROS CITADOS NESTE TEXTO
– “Notícias: manual do usuário”, de Alain de Botton (Intrínseca; R$ 25,90, na Livraria da Folha)
Resumo em uma frase: Se as notícias fossem mais gostosas de ler, seria muito mais fácil se informar e aprender
– “Religião para ateus”, de Alain de Botton (Intrínseca; R$ 25,90, na Livraria da Folha)
Resumo em uma frase: Sei que você se acha todo bonzão e racional por ser ateu, mas admita que a religião tem coisas boas
– “Crônicas de um país bem grande”, de Bill Bryson (Companhia das Letras; esgotado)
Resumo em uma frase: Os EUA são um lugar bem estranho onde se pode comprar uma canoa às 3h da manhã
– “The storytelling animal”, de Jonathan Gottschal (sem edição no Brasil)
Resumo em uma frase: Humanos gostam de historinhas, e a culpa é da seleção natural